Entre a singularidade tecnológica e o fim dos tempos: – A possibilidade do instante.
Este ano de 2012 começa trazendo uma oportunidade para a síntese: Primeiro, entre o retrocesso, a degeneração e a decadência. Segundo, a abertura para uma imensidão que desacelere o tempo e alargue os horizontes para muito além do que podemos ver.
A sensação de uma eminência do fim dos tempos tem a ver com as inúmeras revoluções tecnológicas que alçaram a condição humana até patamares inusitados ao longo do século XX. Uma vertiginosa mudança nas taxas de mortalidade e de expectativa de vida que não foi acompanhada por uma contrapartida evolucionária em nossa condição moral e ética. Se for verdade que ocorreram progressos inegáveis no conhecimento e na técnica, mas não na ética, parece plausível esperar que nosso lado sombrio imponha retrocessos ao desenvolvimento tecnológico.
Precisamos reconhecer que do puro estado de natureza até o surgimento da cidade-Estado, ocorreu uma ruptura profunda e fortemente sedimentada hoje. Basicamente o que chamamos de natureza humana tem muito a ver com essa ruptura. Especialmente se atentarmos para a dicotomia entre a humanidade civilizada em oposição ao conceito de humanidade primitiva ou selvagem. Ruptura bem exemplificada no monopólio do uso da violência pelo soberano, da religião, da filosofia, da moral, do direito, das formas de governo, etc.
Todo este aparato ferramental, ontológico e conceitual é de onde as instituições retiram a materialidade que lhes é inerente. E assim, impulsionaram o desenvolvimento da sociedade, na Polis grega, na Ágora, no conceito de bem comum e de bens de civilização.
Embora compreendamos isto como um fenômeno ocidental, é certo que a ruptura foi ampla e teve vasos comunicantes com a aurora humana, seja nas referencias de Platão ao oriente, seja nas culturas e civilizações orientais que embora portem suas peculiaridades, estão abarcadas no contexto mais amplo da aventura humana. Em menos de 10 mil anos passados desta aventura, chegamos até a sociedade industrial, tecnológica e por fim a sociedade de base predominantemente intelectual em que parece estarmos mergulhando rapidamente.
Diante desta perspectiva de desaparecimento do humano pela mutação em outra condição existencial em que não possamos mais nos reconhecer, muitos esperam o fim dos tempos ou o retorno cíclico da humanidade a condições pela quais já passamos e que nos são mais familiares. Mais especificamente, o retorno ao estado de natureza e da guerra de todos contra todos. De resto, se tem a impressão de que o verniz civilizado é frágil e descontinuado como atestam os Estados falidos e os guetos de exclusão social que permanecem presentes nas sociedades desenvolvidas.
Embora seja evidente que os humanos vivem melhor, em termos de conforto e recursos técnicos, quando nos comparamos aos caçadores coletores, nossa percepção é orientada para registro superestimado dos riscos e dos perigos, como veremos a seguir. A taxa de morte violenta na contemporaneidade é muito inferior à taxa de assassinatos registrada no passado. E, no entanto, certamente nos sentimos tão ou mais inseguros do que em qualquer cultura antiga.
Segundo o psicólogo Steven Pinker vivemos os tempos mais pacíficos da história. No Brasil o número de homicídios por 100 mil habitantes é de 19, na cidade mais violenta do Brasil, Itupiranga, no Paraná: 160. Nas sociedades de caçadores coletores: 500. A ideia de um mundo crivado de corrupção e iniquidades tem a ver com nossa predisposição neurológica para registrar e exagerar os riscos. Pois por milênios os mais otimistas eram massacrados e não deixavam descendentes.
Seguindo com esta síntese entre o pessimismo e o otimismo, podemos nos deter sobre a fronteira de uma mutação que desacelere o tempo e abra a perspectiva de uma historicidade mais lenta e menos conturbada.
Alguns pensadores apostam que estamos nos aproximando do limiar da possibilidade de uma singularidade tecnológica. A partir do advento de uma singularidade tecnológica ultrapassaríamos o limite para a nossa capacidade de fazer predições significativas. Trata-se de um evento teoricamente iminente e evidenciado pelo cálculo da curva dos desenvolvimentos tecnológicos em um gráfico. O cálculo foi realizado por vários cientistas de inúmeras áreas do conhecimento, sendo um dos mais conhecidos Carl Sagan, e compilada por Raymond Kurzweil.
De forma bastante resumida eles previram um momento em que as inúmeras frentes de desenvolvimento tecnológico podem acelerar-se intensamente. Da mesma forma que a força da gravidade faz a densidade passar a tender para o infinito no ponto em que uma estrela colapsa sobre si mesma e dá início à singularidade que em física chamamos de buraco negro. O que há além do horizonte de eventos de um buraco negro é incognoscível. O tecido do espaço tempo é rompido no ponto de infinita densidade onde desaba toda a matéria que fazia parte dos objetos que o centro da singularidade vai consumindo. Há uma teoria de que um novo universo se origina do outro “lado” do buraco negro. O certo é que a natureza do que quer que esteja fora de nosso universo é simplesmente incompreensível no atual estágio do entendimento humano.
Uma singularidade tecnológica, portanto, seria algo como uma densificação do desenvolvimento e das conseqüências sobre a existência humana dos instrumentos tecnológicos. Numa intensidade em que os significados que atualmente atribuímos a existência deixam de fazer sentido.
Sabemos que qualquer tecnologia, uma vez introduzida em uma cultura humana, transforma a sociedade de uma maneira que não pode ser prevista e planejada. A própria noção de sociedade, cultura, e política, emergem das potencialidades que o desenvolvimento tecnológico proporcionam. São noções concretas para nós, mas que não fariam nenhum sentido para uma tribo de caçadores coletores, que representavam o comum da humanidade há cerca de 100 e 30 mil anos atrás.
A reprodução, geneticamente controlada, e a inteligência artificial resumem muitas das ramificações das tecnologias que podem, isoladamente ou em conjunto, nos levar a uma singularidade tecnológica que subverta os sentidos que atribuímos a chamada natureza humana. Para além do debate sobre a existência ou não de algo como uma essência humana e mesmo sobre a confiabilidade da existência de um universo real fora das considerações humanas, alguns céticos e pragmatistas defendem que os nossos sentidos nos trazem informações sobre um mundo real do qual somos parte e não senhores.
Por essas informações podemos inferir que somos parte de uma emergência biológica ampla sobre este planeta. Para além da polêmica a respeito das causas primeiras, do planejamento inteligente, da existência ou não de Deus, é razoável aceitar que estamos num mundo do qual somos um fenômeno, não o único nem o central.
Bruno Latour descreve magistralmente estes não-humanos que em parte são extensões de nós mesmos, como as ferramentas e alavancas; em parte são autônomos, como motores e máquinas e em parte nos ultrapassam, como a síntese entre ferramentas, motores e computadores, representadas pelos autômatos. Por esta visão a ciência vai hibridizando humanos e não-humanos em uma relação de interdependência em que é mais provável a mutação e a fusão do que a dominação ou a substituição de uma espécie por outra.
Sabemos que o nosso planeta existe há cerca de 4,5 bilhões de anos. Há indícios do surgimento da vida há 3,5 bilhões de anos. Os primatas estão na cena desde uns 70 milhões de anos. Nossa espécie, o homo sapiens, deu o ar da graça há meros 100 ou 35 mil anos. Não faz sentido um solipsismo centrado em um “Eu” que baseado em sua própria intuição vem se descobrindo tão efêmero.
Assim, o tema do desenvolvimento da sociedade brasileira e mais especificamente o da Humanização do SUS, que é nossa aposta neste coletivo pensante, se insere entre duas formas de pensamento sobre os quais venho refletindo em meus textos:
– A primeira que tem poucas esperanças sobre o que poderá ser de nós. Seriamos muito mais próximos dos outros animais e teremos o destino que estes tem tido desde o surgimento da vida na terra. Nossa sociedade será tragada por retornos de nossa irracionalidade inerente. Poderemos postergar e mitigar, mais jamais afastar a inexorabilidade de nossa extinção, como as demais espécies que habitam e habitaram este planeta.
– A segunda, aparentemente mais otimista, aposta em que poderemos engendrar nossa próxima mutação, aliando a engenharia genética e a inteligência artificial para ultrapassarmos o ponto da singularidade tecnológica nos transformando em uma espécie que sabiamente saberia honrar a odisseia humana. Uma linha de afiliação e permanência em que teremos garantido e cativo nosso lugar e nosso papel numa história expandida do cosmos e da vida.
No fundo as conseqüências destas intuições são semelhantes: Somos menos importantes do que a religião, a filosofia e o humanismo nos fizeram crer. Razão e técnica são coisas diferentes e a única que pode realmente impulsionar uma mutação na natureza humana ou em nossa espécie seria a técnica que é abertamente filha das sombras e da luz simultaneamente.
A razão frágil das religiões, de muitas filosofias e das ideologias políticas, seriam largamente superadas pela técnica. A contingência e a escassez na qual se baseia o valor de toda a autoridade, poder e dominação desabam frente aos efeitos de uma arte científica que arranca dos sonhos os cenários de felicidade que a humanidade persegue desde sua aurora. Ou isto, ou a extinção natural e cíclica.
Tudo parece ser colocado em uma aceleração vertiginosa dos instantes que sentimos com intensidade nestes dias. Mas também numa perspectiva oceânica ou sideral e que se aprofunda na noite do tempo e do espaço. Um jogo de milênios em que Atlântida e Lemúria são plausíveis e a liberdade e as tiranias sempre retornam. E entre paraísos perdidos e apocalipses presentes, tudo se repete.
Aqui, a estética do instante e sua historicidade têm uma calorosa placidez e uma serenidade metafísica. O que virá e como será, são mistérios impregnados na profundidade e altura infinita de tudo o que percebemos como finito em extensão. Tentando pensar com Gaston Roupnel e Bachelard, o ecoando, “A duração não é senão um número cuja unidade é o instante”.
Temos, portanto, direito à plenitude deste instante. Podemos nos orgulhar do limiar assustador em que nossa existência foi colhida. Exatamente como foi assustador levar o fogo ao interior da caverna na pré-história e pintar em suas paredes as memórias dos sonhos e dos instantes da caça, da vida e da morte.
Finalmente, podemos diante da utopia e da escatologia encontrar nossa própria paz. Este é o nosso tempo. E este é o tempo que nos possui. Como na dicotomia atômica entre onda e partícula, oscilamos conforme a perspectiva: Num instante somos atores, os senhores da vontade. Em outro, realizamos o ato, representamos a cena, seguimos o roteiro. Curiosa narrativa que emerge ao ser narrada, muito proximamente como este texto no qual agora coloco um ponto final.
Por Maria Luiza Carrilho Sardenberg
Mais um post intrigante e que vai fundo em muitas questões. Inquietante, mas também marcando a possibilidade de novas aberturas para o inusitado.
Quando vc fala de um momento em que não são mais possíveis as predições, me pergunto se não foi sempre assim. Predições como um desejo humano de controlar a vida e o futuro, na linha da "organização" e da teleologia. Marx pensou que um futuro da tecnologia pouparia o homem de tarefas "menores", para que ele pudesse transcender pela fruição das artes e outras produções humanas. Não sei se faço uma afirmação incorreta, mas parece-me que era isso que dizia…E o que vemos? Por um lado, uma grande liberação das forças humanas, mas por outro…
Gostaria que vc indicasse leituras sobre essa questão das "singularidades tecnológicas". Já ouvi falar, mas nunca li nada.
Um beijo e obrigada,
Iza