Liberdade, criatividade e segurança.

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Ser feliz é uma arte de difícil execução. Estar infeliz é uma condição comum. Todos os seres humanos a conhecem bem. No entanto, tolerar esta verdade é raro entre nós. Mas podemos aceitar que a vida é mais contingente do que construída? Certamente podemos menos do que costumamos pensar.

Esta humildade, embora necessária, é rara. As religiões monoteístas nos levam a crer numa doutrina que afirma que a terra foi dada aos homens para ser explorada. Tudo é mero instrumento divino dado aos humanos para que realizem seus desejos.

A experiência de desejar, esperar e frustrar-se é característica do cotidiano.

Esta característica só é aliviada pela rotina com que tecemos a duração de nossas horas. Os intermitentes reaparecimentos do hábito são um consolo incontornável. Com ele podemos sofrer o tédio das horas monótonas, mas escapamos da experiência vulgarmente comum de ver frustrado o desejo em cada futuro imediato ao qual vamos chegando.

Primeiro: Desejamos muito mais do que precisamos. Nossos desejos são facilmente confundidos com a justiça, com o bem, com o belo e com o que é ético. Racionalizamos com agilidade e nossa verdade parcial é facilmente tomada e apresentada como a verdade universal. Esse é o solo fértil dos pequenos fascismos. A seara do grande fascismo cultural, social e político, (precisamente nesta ordem) emerge no solo do microfascismo que nossa pretensão à verdade aduba.

Segundo: Nossos desejos engendram ações que desencadeiam resultados diferentes, maiores ou menores e frequentemente opostos ao que desejávamos. Isso não decorre de erros humanos. É da própria natureza do que compõem nossa volição. Um misto de hábitos inconscientes, eficientes e necessários para a manutenção e realização das ações inadiáveis para a nossa sobrevivência é visível e indispensável para os seres vivos, inclusive para nós humanos.

A liberdade é um efeito de perspectiva. Ao refletirmos sobre o que fazemos tendemos a percebê-lo como efeito de uma tomada de decisão. Isso reforça o hábito e a sua eficácia. A soma continuada de repetições ocasionalmente é contaminada por uma intuição, que emerge do baú de nossas experiências adormecidas, ou nos vem de uma percepção externa que se ajusta ao contexto. Então deliramos uma ação livre e criadora. A reduzida probabilidade de uma intuição reforça a ideia recorrente de que escolhemos livremente e criamos roteiros de conduta do nada.

A liberdade e a criatividade são impressões que se reforçam mutuamente. Se aceitássemos que só poderíamos reagir a partir de um cardápio inumerável de opções pré-impressas em nosso interior, dificilmente nos oneraríamos com o conceito de construção do mundo, seja o interior ou o coletivo. Como estamos permanentemente mudando, pensamos que estamos criando. Confundimos duas coisas diferentes. A primeira é empiricamente óbvia. A segunda é uma forma humana de sonhar conscientemente.

Assim, o individualismo se reforça e além de termos a ilusão de criarmos, reivindicamos a posse do que “criamos”. Todas as ideias de poder, punição, autonomia e liberdade dependem do conceito de possuir uma identidade. Possuir, se apossar lentamente, conquistar uma identidade é uma distopia. Uma ideia mórbida traduzida como um ideal.

Geralmente quando pensamos ter feito isso, poderíamos igualmente afirmar que estamos em paz com o que percebemos que somos. E que esta capacidade de ver com clareza permite que a potência (da qual somos meros portadores) irá produzir os bons encontros. Irá afirmar a vida e sua exuberância sem pretensões de posse ou domínio.

Pois isto, ter autonomia é muito diferente de ter uma identidade. Ter uma identidade significa ter nascido em um determinado momento no tempo, num lugar específico, sendo filho de pessoas únicas, inseridas em um contexto cultural e histórico únicos. Somos antropologicamente situados e determinados.

Assim, não deixamos de ter uma identidade e de constituirmos uma singularidade única que emerge em nossa concretude que age no mundo e desenha uma linha de trajetória. Não precisamos aspirar uma liberdade que constrói o tecido da realidade, no sentido de desejar determinar o mundo que nos contém. Podemos nos contentar com realizar a nossa potência com lucidez. Aceitar a intuição de nossa parcialidade, incompletude e plenitude.

Nada disso se relaciona ao conceito de que podemos fazer escolhas na direção do bem, do bom, do belo e da verdade. Elas podem florescer em nós. Certamente por uma combinação disciplinada de fortuna e virtude iremos mudar a direção dos eventos. Diremos que o sucesso é a direção que confirme nossos desejos e fracasso a direção que frustrar nossa volição. Tudo isso é interpretação. Ruído sobre o que há.

Como criamos o hábito tradicional e cultural de lermos a história humana como uma epopeia em busca da redenção das almas e não como a recorrência interminável de ciclos de ascensão e queda, temos que crer na liberdade, na culpa e na salvação. É uma meta narrativa, um mito tão real como qualquer outro. Responde a uma necessidade de reduzirmos a ansiedade frente ao mistério da existência.

Não se trata da verdade. Trata-se da resposta racionalizada a uma angústia existencial que não pode ser nomeada.

Mesmo este texto que emerge em minha escrita a partir de meus pensamentos é uma bricolagem de um sem número de leituras e conversas, memórias impressas, conscientes e inconscientes. Nada disso me pertence. Atravessa-me, perpassa minha memória de vivências e emerge como um texto, como uma mensagem.

Este texto é uma informação que seguirá sua trajetória no mundo da mesma maneira que uma mutação genética seguirá seu curso. Chegará a um beco sem saída, ou será o início de uma nova trajetória de um caminho possível para outros muitos ou poucos eventos.

Uma diligente e disciplinada busca de referenciais que atestasse a posse original das ideias presentes nessa mensagem seria mais uma peça de ficção. Não menos necessária do que outras que impulsionaram a ideia de que progredimos. Também não menos dispensável. A arbitrariedade e concretude dos sistemas simbólicos de posse, seja da moeda ou do prestígio, é uma marca distintiva da espécie humana. Responde a necessidade de segurança.

O pânico ontológico que adviria de uma comunidade de comuns nos traria uma insegurança que ameaçaria a solidificação dos hábitos. A identidade serve a necessidade de segurança. Mas a posse dos bens simbólicos, já não é mais um privilégio dos humanos.

Estamos no limiar da partilha absoluta do patrimônio intelectual humano com os bancos de dados de inteligências híbridas que emulam a capacidade de nossa espécie de classificar e catalogar os objetos e as ideias.

Em algum momento no futuro um programa de computador instalado em um processador suficientemente potente irá “ler” meu texto e denunciar muitos, talvez não todos, os referentes que compõe estas ideias impressas nos carácteres destas linhas.

Se alguém acreditar que seres tão efêmeros como os da espécie humana são mesmo capazes de possuir e furtar ideias, pode ficar tranquilo. Os humanos deram curso a emergência de policiais das ideias mais eficientes que os revisores literários e acadêmicos. A segurança poderá ser preservada. A incerteza prevalecerá e será a fonte mais comum da ilusão de liberdade e autonomia.

Estas ideias emergem de um débito reflexivo disparado pela leitura destas linhas:

Dupla existência da verdade

Encontrei hoje em ruas, separadamente, dois amigos meus que se haviam zangado um com o outro. Cada um me contou a narrativa de por que se haviam zangado. Cada um me disse a verdade. Cada um me contou as suas razões. Ambos tinham razão. Ambos tinham toda a razão. Não era que um via uma coisa e outro outra, ou que um via um lado das coisas e outro lado diferente. Não: cada um via as coisas exatamente como se haviam passado, cada um as via com um critério idêntico ao outro, mas cada um via uma coisa diferente, e cada um, portanto, tinha razão. Fiquei confuso desta dupla existência da verdade.

Fernando Pessoa, Encontro de Poesia