A igualdade fundamental e a liberdade racionalizada- Parte I

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Esta reflexão se dará em dois tempos. O primeiro mais especulativo e o segundo mais empírico. Por enquanto vamos debater estas primeiras ideias sobre a liberdade e a contingência. As duas existem ou se excluem mutuamente? Pode existir uma contingência contornável? É isto que significa ser livre? Numa sociedade de inúmeras possibilidades, em um mundo probabilístico a liberdade é o resultado da incerteza fundamental que habita o íntimo da matéria?

Uma vez que é possível definir um índice de igualdade como o somatório de pontos fundamentais (os quais podemos ou não compartilhar) é relativamente fácil constatar que somos majoritariamente iguais. Nós humanos, especificamente, e os demais seres vivos em geral, partilhamos atributos fundamentais.

A existência em determinadas condições e a consequente morte falam por si. Sem nenhum prejuízo da singularidade a igualdade entre os viventes é de tal medida observável que estabelecer uma condição de desigualdade entre os homens é um empreendimento titânico e histórico. Uma das mais evidentes produções da civilização humana é a desigualdade de condições de vida que produzimos em poucos milênios, depois de dezenas de miliares de anos em que vivemos em relativa condição de igualdade. Já a liberdade, parceira do tema da igualdade, tanto quanto da diferença, é mais difícil.

Olhe em seu interior. Lembre quando o certo colidiu com o certo e pense na opção que escolheste. Uma situação em que estamos plenamente conscientes do caminho a seguir comumente é efeito do mero hábito ajustado às necessidades individuais e coletivas simultaneamente. Afastar-se do que é perigoso e lutar para manter-se em condições seguras, enquanto tentamos fazer o mesmo por nossos familiares (amigos e comunidades) é um princípio ético. Ou, mais precisamente, a própria ética, que temos em comum com os demais animais.

Mas frequentemente nossa segurança e bem estar são contrários ao bem estar de quem amamos e daqueles a quem estamos ligados. Nosso conforto é um desconforto para quem necessita que nos inquietemos e fiquemos vigilantes. A ação de outros na busca do seu próprio bem nos acarreta perigo.

A convergência de consenso e a comunidade de destino em que vivemos foram forjadas em busca da necessidade de estabilidade de que não podemos abrir mão. Por outro lado, a inquietação e a necessidade de aventura nos levam a buscar o novo. E com isso aceitar o risco que este desafio acarreta. Da inventividade e inquietação humana emergem nossos recorrentes conflitos e guerras.

A instituição ancestral da família (do bando, da tribo, do clã e da sociedade) é tentativa, mais ou menos bem sucedida (de acordo como a perspectiva que se escolha para julgar) de somar os esforços comuns e afastar a colisão do certo com o certo. Do justo com o justo para os diferentes. O empreendimento civilizatório é marcado pelas emergências de mitos que tratam de habituar os seres humanos a esta realidade ou de tentar leva-los a ilusão de superá-la.

Há civilizações milenares que perduraram com a ideia de que ascensão e queda são cíclicas e inevitáveis. E há outras civilizações e culturas que se fundam em mitos de queda, redenção e salvação da humanidade. Umas não são melhores ou piores do que as outras. Ambas surgem se desenvolvem, entram e decadência e desaparecem.

Nossa cultura ocidental é particularmente marcada pelo mito judaico cristão de progresso, salvação da alma e centralidade do humano no esquema da criação, ou do universo. Embora as evidências do contrário sejam abundantes no cotidiano de cada indivíduo e no desenrolar da história das sociedades, não podemos, aparentemente, nos livrar do consolo deste mito. Da mesma forma que os ameríndios não puderam ver as caravelas e os conquistadores fora do contexto de seus próprios mitos.

O liberalismo deve muito a ideia de Maquiavel sobre o destino ou sorte e a virtude ou habilidade. Pareceu a muitos que ele afirmou que podemos lidar com as noções de fortuna e virtude dando um curso e viabilidade a nossa autoconstrução consciente e livre. Como estrategistas (que pairam sobre o cenário da vida) poderíamos dispor de nossas habilidades na busca da realização de nossos objetivos.

Não foi exatamente isso que Maquiavel quis dizer, em minha opinião. Mas para todos os efeitos a noção de que na vida e na política certos fins são adequados aos meios, sem ter que necessariamente referir-se ao certo e ao errado, mas apenas aos resultados, acabou por ser incorporada ao senso comum. Praticada, na esfera pessoal e condenada na praça pública, esse curso de ação prevalece entre nós.

Mas então temos de crer no caráter inato dos indivíduos e em sua liberdade simultaneamente. Pois sem liberdade não há culpa e sem determinismos não há alguma forma de perdão possível. Ou seja, devemos ser livres para errar, e determinados para merecer a redenção. Sobre nós e nossa liberdade deve pairar a providência divina. Sem isso a noção elaborada de justiça (que Nietzsche já dizia ser a mera racionalização de nosso abuso contra o outro) se resume a noção de causa e efeito, ação e reação da física clássica.

Duas descobertas científicas amplamente testadas e que contam com fortes evidências empíricas fundamentais para a modernidade são professados e negados em nossa modernidade líquida, tardia ou hipermoderna:

– Darwin mostrou que somos mais uma espécie animal. Um efêmero lance de sorte na longa história da vida em nosso planeta.

– Freud mostrou que ser uma pessoa boa ou má é o resultado de uma soma de eventos fortuitos em que o lugar e a descendência a que pertencemos têm um papel fundamental. Aliado a caótica soma de eventos que sucedem ao longo dos primeiros anos de vida de uma pessoa, deveríamos desconfiar fortemente das noções de responsabilidade e autonomia.

Ou de outra forma, estas noções podem ser funcionais do ponto de vista da manutenção da coesão social e das relações intersubjetivas. Mas não devem fundamentar nenhuma noção de justiça. Poderemos aceitar que os acidentes na vida são prevalentes, frente a nossa reduzida autonomia e liberdade? Acredito  que na prática a noção de justiça não é mais do que forçar nos fatos empíricos,  onde vemos a ação e a reação, uma racionalização do justo para cada contexto, conforme nossos interesses inconfessos.

Muitas formas de pensamento filosófico se constituíram para tentar dar conta de resolver este paradoxo. Tanto o liberalismo, quanto o coletivismo pretenderam descortinar caminhos de redenção da humanidade. As sociedades ocidentais mantém sua coesão basicamente no pacto de buscar incansavelmente esta redenção: Evitar o fato comum da colisão entre o certo e o certo.

Na prática as mesmas guerras e tragédias que marcam a ascensão e a queda de civilizações ao longo dos séculos, marcam nosso tempo.

Suas motivações é que são peculiares. Cada guerra e cada conflito, no ocidente, são travados para acabar com todos os conflitos.

Cada evento cíclico é percebido como a eminência da redenção final da humanidade.