CRACK: A epidemia involuntária e suas consequências

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"Que epidemia é essa?" Epidemia  das Internações Compulsórias (leia também: https://redehumanizasus.net/59776-internacao-compulsoria-e-prisao-mascarada).

 

Compartilho artigo publicado pela Revista RADIS – Comunicação e Saúde:

(https://www.ensp.fiocruz.br/radis/revista-radis/123/pos_tudo)

 

A epidemia involuntária e suas consequências

 

Data de publicação:  30/11/2012

Luís Fernando Tófoli *
 

    Atualmente, no Brasil, vivemos sob o grave e intenso impacto de uma epidemia que altera a percepção da realidade e ameaça a nossa sociedade. Convido o leitor a fazer um pequeno experimento pessoal: repita a frase acima a diversas pessoas, de variados níveis socioeconômicos e educacionais, perguntando que epidemia é essa. Não é difícil prever a resposta: crack. Consideremos, no entanto, a possível existência de outra epidemia: a de um conjunto de conceitos – memes – associados ao uso crack. Diferente das garatujas das mídias sociais às quais este nome se encontra agora ligado, um meme é, academicamente falando, uma ideia que tende a se replicar e se espalhar como que por contaminação. Concepções políticas e religiosas, por exemplo, seriam típicos memes. A esta epidemia memética corresponderia o seguinte conjunto de ideias, todas questionáveis diante da evidência disponível na literatura sanitária: 1) “vivemos uma epidemia do uso do crack"; 2) "o usuário de crack não tem condições de decidir por si mesmo"; 3) "a única solução possível para o usuário de crack é a internação compulsória".

   O termo epidemia do crack tem sido repetido metodicamente nos meios de comunicação, e é muito fácil aceitá-lo como verdadeiro. Entretanto, não dispomos de dados que apontem que tenha havido crescimento inequívoco do uso de crack nas grandes cidades brasileiras nos últimos anos. Parece claro, no entanto, ainda que mais dados sejam necessários, que o uso do crack cresceu no interior do Brasil. Mesmo assim, resta o desafio de esclarecer se o impacto nestes novos e antigos territórios se deu pelo surgimento de usuários ou porque houve a migração de consumidores do mercado irregular (ainda que lícito) de cola de sapateiro e solventes para o mercado ilegal do crack. A questão, portanto, não está fechada.

   A experiência clínica das iniciativas de redução de danos e sua tradição de olhar o indivíduo com uso problemático de drogas ilícitas numa perspectiva mais ampla de cuidados, têm demonstrado que o meme “todo consumidor de crack perde sua autonomia" é inverídico. Há relatos e evidências que indicam claramente que quando o dependente de uma droga cujo uso está associado a grave comprometimento social – como o álcool, os opiáceos e o crack – é tratado como um sujeito e sua vontade é levada em consideração, resultados positivos podem ser atingidos.

  É, no entanto, no terceiro meme – o que indica a solução do encarceramento compulsório ou involuntário como único possível – que residiria o maior e mais perigoso erro dessa epidemia memética. Além da redução de danos, existe um vasto conjunto de estratégias que deveriam ser utilizadas. As respostas às intervenções variam muito de indivíduo para indivíduo, e nenhuma medida tem como ser mais eficiente do que um conjunto delas, sem falar na discussão sobre a reforma da legislação de drogas no país. Isso não quer dizer que não existam casos que necessitem do tratamento involuntário – quando a equipe de saúde assim decide, diante do risco do paciente. Mas a melhor evidência disponível nos permite assumir que os casos que exigem internação involuntária são a exceção e não a regra do universo de usuários de crack. Por fim, quando analisamos a literatura sobre tratamento compulsório "aquele determinado pelo poder público e que no Brasil, até o momento, só pode ser aplicado caso a caso e não em massa" descobrimos que ele é ineficiente como cuidado à saúde e vem sendo criticado por sérias distorções éticas.

  A epidemia memética do crack estaria, portanto, assentada sobre distorções da realidade que têm uma grande aceitabilidade pública. Mas, por que ela seria um risco à nossa sociedade? Haveria outros problemas além do relevante – e real – sofrimento pessoal e social causado pelo uso do crack? Sim. A questão reside nos riscos de se interpretar o uso de crack como uma doença transmissível e que, portanto, exigiria medidas radicais de isolamento epidêmico. Diante disso, aceitar-se-ia o uso da força como medida emergencial e assim se solapariam os direitos constitucionais, como no caso da ceguidão branca e epidêmica apresentada no romance Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago.

   É, portanto, extremamente importante que os trabalhadores dos sistemas únicos de saúde e assistência social não se deixem levar pelo ofuscamento que contamina a visão sobre o crack no Brasil e seduz os políticos a soluções fáceis e autoritárias transvestidas de políticas públicas, como no caso da internação compulsória de usuários do crack proposta por Eduardo Paes [prefeito], na cidade do Rio de Janeiro. Da mesma forma, devemos cobrar do ministro da Saúde, Alexandre Padilha, que tem toda competência para separar o que é epidemia de ideias e o que é agravo real, superar as pressões políticas e assumir um posicionamento mais claro de seu discurso, de forma a não sugerir que haja apoio federal a medidas higienistas e de caráter protofascista.

 

* Professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC). Especial para a 'Radis'.

 

 

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