O pensamento convergente.

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Bachelard, Margulis, Winnicott, Maturana, Morin e Lovelock.

Os seres humanos estão conectados as demais formas de vida e toda a vida é interligada a química inorgânica de seu ambiente. Esta conexão verifica-se pelo estudo de nossa identidade pessoal e coletiva. Nosso corpo biopsíquico toma forma em meio as relações que estendemos, ainda antes de nascer, com o entorno biológico que é o corpo de nossa mãe e pelo ambiente em que ela existe. Eventos na vida dela, durante a gestação, o que ela sente sobre a vida que vive e seu mundo, vão dar direção a configuração genética que irá nos conferir uma singularidade única.

Logo que nascemos precisamos ser tomados numa relação de sentido imediata. Nestas relações, o nosso advento tem um sentido e um significado orientando os gestos, olhares e toques que nos são dirigidos. Estes caminhos em emergência vão delimitando as fronteiras entre nós e o mundo percebido. Ninguém faz o mundo sozinho. Mas o mudo de ninguém é possível sem uma parcela de atribuição de sentido que é única. O universo é solidariamente gerado pela interação dinâmica de suas partes, de modo que cada parte é causa do todo e causada pelo todo que é seu contexto.

A insolúvel questão da liberdade só se resolve pelo exercício e movimento: – Sem um contexto que nos permita emergir, não somos. E logo que somos, o contexto se move, modifica-se pela nossa presença. O pendulo não se detém em nenhum extremo, seja o da causa que nos move, seja o da novidade que é nossa emergência. Em uma dimensão estática a liberdade e a determinação são cada uma, isoladamente, absurdas.

O sentido que atribuímos as intermitências, continuidades e repetições, assim como os gestos inaugurais, as primeiras emoções, vão cristalizando o encadeamento de memórias que iremos chamar, em conjunto de eu ou self. O ser é um hábito que retorna e se renova. Emergimos para a existência, antes ainda de termos consciência, como membros de uma família, uma linhagem, uma tradição e uma comunidade. As muitas formas de contextos familiares, linhagens culturais, comunidades, enfim, os modelos culturais em que vamos nos vendo inseridos, nos definem.

Há, no entanto, uma diversidade nessa unidade. Cada instante tem uma conexão perene com tudo que é parte de nós. Como este instante não tem dimensão, está fora do tempo e do espaço, ele fundamenta, de forma, ao mesmo tempo transcendente e imanente, o que chamamos de realidade. No instante, ao mesmo tempo em que é a unidade fundamental do tempo, do que parece se repetir infinitamente, uma novidade está em latência. De tudo o que o mundo é, em sua multidimensionalidade interconectada, o novo espreita de fora, emergindo para dentro da realidade. Combinando efeitos de rotina e repetição com emergência, a novidade nos parece descontinua. Mas unificada, nos dá a ideia de realidade percebida.

A realidade é o conjunto da soma do que é tido como real em seu aspecto global e particular. As sensações que os estímulos do mundo provocam em nossas células neurossensoriais, nos permitem supor o mundo real pelo cálculo estatístico. Embora a ausência de evidencias não permita inferir a evidencia da ausência, como ensinou Carl Sagan, o fato de o mundo poder ser uma ilusão e a existência ser algo como um sonho, não é um absurdo, é uma probabilidade já insinuada na filosofia oriental. Com tudo, ainda podemos confiar nos nossos sentidos para operar no mundo. O que a evidência da rotina, do hábito, permite que seja um consenso razoável é que o mundo é o efeito de interações randômicas entre fatores em que a cognição emerge em processos de estocagem, acumulação e mutação.

A consciência e a inteligência humana, desse ponto de vista, não são nem extraordinárias, nem uma rota para onde o universo se direciona. Por enquanto, é plausível pensar que sejamos um acidente, um aspecto da diversidade no universo. De nenhuma forma únicos ou centrais no esquema das coisas que nos chegam aos sentidos.

A religião que deveria nos ajudar a lidar com o mistério, uniu-se a filosofia, no ocidente, para oferecer um sentido para a história humana. Ela foi sucedida pelo Iluminismo na tarefa de desconectar o humano do mundo natural e superar a contingência. Com isso vivemos em um contexto de mito e fé não examinada no progresso, tanto quanto, estávamos mergulhados na busca da redenção da alma.

Se a história pode ser um guia, é para prevermos que o mundo estará novamente se tornando um lugar perigoso e hostil. A paz que sucedeu a guerra fria pode ter sido um intervalo menos turbulento que acabou em 11 de setembro de 2001. A religião ressurge como instrumento de intolerância e conflito. Poderia ser um elemento de contrição e humildade diante do abismo que o conhecimento acumulado está revelando para nós. Poderia ser um conforto diante do incomensurável mistério da existência. Talvez seja para alguns. Para a maioria não é.

Segundo John Gray, boa parte da ciência tem sido divulgada como um empreendimento de fé irracional na razão. O humanismo é, em parte, um evangelho do absurdo por tentar colocar o homem no centro do universo ou no topo da evolução. A evolução não tem um topo ou um fim.

Por 200 milhões de anos os Dinossauros dominaram a terra. Processos complexos e profundamente cognitivos foram necessários para que essa hegemonia se mantivesse. Um acidente cósmico, o choque de um asteroide de 10 quilômetros de diâmetro, parece ter dado fim a esta hegemonia e dado espaço para os pequenos mamíferos dos quais nos originamos.

Nada indica que estávamos em algum plano preconcebido. Como por uma série de acasos vamos nos encontrar com alguém que viremos a amar e ter filhos, um dia nossa espécie veio ao encontro de Gaia. Estamos nela há algum tempo. Não é certo por quanto ficaremos. Também não podemos sequer imaginar o que será nosso futuro. Se um dia estivermos tão distante de nossa realidade, como estamos dos primatas que nos antecederam, não podemos imaginar o que isso significará. Não sabemos se a civilização é um fenômeno raro ou comum no universo. Não sabemos o quanto diversas podem ser as formas de autoconsciência. Não sabemos, enfim, se somos banais ou únicos. Talvez sejamos os dois e a questão não tenha importância, assim como sermos livres e determinados simultaneamente.