Ouvir as avós e a voz das ruas!

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Foto: Sebastião Salgado

Ouvir a mãe de uma jovem caída na vida. Escutá-la dizer que por trabalhar a noite a filha foi abusada na infância pelo amigo do pai. Que este ao saber quis bater na filha. Mas o abusador não deixou.

Ouvir que ela deixou o filho com a avó, junto com uma carta pedindo perdão pela impotência de cuidar de si. Escrever mil desculpas por se atirar as ruas e deixar a vida fluir de seu corpo junto com a dor acumulada. Deitada na pedra fria das ruas, aspirar a pedra das folhas. Esperar pela morte no inverno ao lado do namorado de amor e dias contados.

Ler, ver e ouvir, escutar a voz cansada de quem não desiste. De quem antes de tudo não entende. Não pode medir a extensão do tempo que não retorna, mas segue acontecendo um milhão de vezes. Falamos um sem fim de vezes. Repetimos muitas cenas na mente.

Não há como desacontecer o passado. Mas ele retorna para ser finalmente esquecido. O passado quer morrer. Quer esquecer a vergonha, a culpa, a dor, o ressentimento, a raiva, quer esquecer o que aconteceu. Se ele é lembrado é apenas para dar sentido. Para alertar. E evitar a repetição infindável de contingências que levam uma moça, mãe, trabalhadora a deixar a filha com o pai nos plantões da noite. O passado só volta para ser um aviso para quem sabe ver e ouvir.

Mas como ninguém escuta, ninguém aceita sua trágica mensagem, ele não morre. Ele retorna como sombra e a história maldita se repete.

Um pouco da dor ficou, um pouco da dor passou.

Se vamos ouvir a voz das ruas, temos que ouvir a voz das moças, das mães e das avós. Este mundo das ruas não é um mundo de povo. O povo é que é um mundo de gente.

Não há como raiar um novo dia onde a voz das gentes não for ouvida, onde a vida não for enxergada com olhos de ver. Chega de olhos de crer. Um sentimento vale um milhão de fatos. Porque um milhão de sentimentos mudam os fatos.