reinvenção da Saúde Mental de Curitiba: Dilemas Atuais

19 votos

Em meio à qualificação das novas equipes de dois CAPS, da abertura de uma residência terapêutica e da implantação de uma regulação de leitos aqui na secretaria, fiquei sabendo, meio surpreso, que segunda que vem não trabalho por ser semana de natal. Este ritmo alucinante que cansa à exaustão aqueles que se envolvem de fato, é fruto de um processo de intensidade única na saúde mental do país neste ano.

A saúde mental de Curitiba passa por um processo revolucionário, o que implica numa ruptura com uma ordem vigente e a instalação de novas estruturas institucionais. Esta revolução, em 2013, está longe de restringir a uma reforma da psiquiatria ou de uma intervenção num hospital psiquiátrico. A mudança de modelo implica numa ampla transformação que envolve todo o sistema, das relações interinstitucionais, da percepção dos usuários e trabalhadores sobre a rede e da forma de se fazer gestão. Para que tal processo seja estruturante, envolve aspectos éticos do cuidado e uma mudança da concepção da relação entre Estado e sofrimento mental. O que acontece em Curitiba dá a oportunidade de realizarmos uma análise pertinente ao momento da política de saúde mental que vivemos no país, seus limites, suas reformulações necessárias. Especialmente porque nossos desafios hoje são aqueles comuns a todo o Sistema Único de Saúde, e não apenas á reforma psiquiátrica.

Política de Pessoas
Como em todo o sistema, enfrentamos importantes dificuldades com a política de recursos humanos em nossos serviços. Historicamente, a gestão municipal contratou mão de obra através de Organizações não Governamentais o que implicou em diferentes conseqüências; precarização da vinculação dos funcionários, a não incorporação destes trabalhadores de saúde mental como servidores de saúde, sub-financiamento do sistema e baixa capacidade de gestão do funcionamento da rede. O Ministério Público do Trabalho passou a entender este modelo como terceirização de atividade fim, determinando sua mudança a partir de meados deste ano. A partir de então passamos a procurar alternativas, negociar prazos e discutir com os até então contratantes de recursos humanos, com a finalidade de evitar um colapso de toda a rede. Neste ponto entra em cena outro desafio em pauta no sistema único de saúde e mais intenso na saúde mental; a judicialização das ações de saúde.

A partir de dezembro, num processo desgastante para gestão, trabalhadores e usuários, iniciou-se a substituição de duas equipes de CAPS vinculadas a uma associação ligada ao tratamento de dependência química por servidores concursados pela Fundação Estatal de Atenção Especializada, da Secretaria Municipal de Saúde. O processo deverá se estender ao longo dos próximos anos para toda a rede, acentuando o elemento disruptivo presente em qualquer revolução. Como em toda transformação radical, o momento mais delicado é o primeiro, no qual os alicerces para um novo modelo ainda encontram-se em estruturação e existe a necessidade de ruptura com aquele vigente. O processo todo denunciou grande maturidade e compromisso dos trabalhadores do serviço, que ainda que ligados a instituições privadas, com vinculação trabalhista precária, com direitos de trabalhador freqüentemente ameaçados e historicamente desvalorizados, sustentaram assistencialmente o serviço até o último instante, preparando os usuários para a transição e comprometendo-se em não gerar desassistência.

Se por um lado esta mudança estrutural tende a ser menos impactante ao longo dos próximos anos, uma vez inaugurada, outros enfrentamentos apontam contradições no modelo e tendem a se aprofundar, demandando reajustes no mesmo e uma reflexão do atual momento da reforma psiquiátrica.

Dimensionamento e financiamento
Entre os desafios que tendem a se aprofundar nos próximos anos, alguns são emblemáticos para toda a rede de saúde mental do país, em particular, o dimensionamento e financiamento do sistema. Nenhuma capital tem implantada em sua totalidade os dispositivos de saúde mental em número de serviços preconizados pela RAPS. Por um lado, existe a histórica dificuldade de inovação dos dispositivos, enfrentamento com os movimentos de classe, resistência de setores mais conservadores. Por outro lado, não é possível ignorarmos o alto custo dos serviços de saúde mental, especialmente os CAPS III e ad III. Mesmo com o recente aumento dos valores de custeio dos CAPS ad III, os valores repassados pelo Ministério da Saúde dificilmente chegam a 50% do custo total do serviço em funcionamento com uma equipe mínima. Com raríssimas exceções, os estados pouco apóiam os municípios no financiamento da RAPS.

Se o município tem poucos serviços, isto é tolerável, mas se nos dispomos a implantar o número de serviços para a cobertura preconizada pela política de saúde mental- isto é dois serviços de funcionamento 24 horas para cada 200 mil habitantes- o custo mensal inviabiliza a manutenção da rede. A esta dificuldade se somam diversas outras apontadas no I Encontro Nacional de RAPS, aqui em Curitiba no início de dezembro, como a existência de poucos quadros qualificados ou médicos dispostos a trabalhar na rede pública. Mas em relação às estas, existe a possibilidade de estratégias menos onerosas e que demandam articulação. Este é o caso de aproximação da rede de saúde das universidades públicas, apoiando a formação em campo e qualificação dos serviços, ou a abertura de residências médicas. Ao longo deste ano estabelecemos parcerias com pelo menos 08 instituições de ensino e pesquisa, além de abrirmos 09 vagas de residência em psiquiatria na rede de Curitiba. Entretanto, o impasse do custeio, associado ao dimensionamento é um aspecto estruturante, ou desestruturante, da sustentabilidade da política nacional de saúde mental.

O dimensionamento dos serviços presentes num município é definidor do papel que uma equipe desempenha junto ao restante da rede. Em Curitiba, na medida em que abrimos leitos em CAPS, nos deparamos com uma decisão importante. Na medida em que realizamos dois movimentos simultâneos: abrir os serviços para demanda espontânea (os CAPS não eram porta aberta) e fortalecer os serviços para realizar atenção à crise. O impacto assistencial foi enorme. Temos quase 100% de ocupação dos leitos de CAPS hoje, triplicamos o número de usuários graves e o fizemos com muito apoio dos trabalhadores. Por outro lado, este movimento era incompatível com o aprofundamento dos CAPS em ações de matriciamento e articulação com a atenção primária. Isto porque os serviços com leitos tiveram de cobrir sempre mais de um distrito. Sabemos que para que um CAPS atenda, numa extremidade situações de crise e, numa outra extremidade, realize ações de matriciamento, deve cobrir populações de no máximo 200 mil habitantes, o que demanda, em grandes municípios, necessidade de abertura e custeio de muitos serviços. O dimensionamento interfere diretamente no processo de trabalho dos CAPS. E o financiamento, por sua vez, no dimensionamento da rede.

Cobertura médica e embates coorporativos
Outro desafio emblemático que enfrentamos ao longo do ano e que tende a se acentuar é a cobertura médica dos CAPS de funcionamento 24 horas. Este desafio está fortemente vinculado à relação entre a política de saúde mental e os conselhos médicos e à capacidade dos CAPS de serem espaços de atenção à crise. O debate ganha força na medida em que, ainda que a retaguarda médica seja prevista nas portarias que regulamentam os serviços de funcionamento 24 horas, não existe qualquer financiamento para estas retaguardas. Pior: os municípios que apresentam uma rede substitutiva robusta, isto é, com vários serviços de funcionamento 24 horas, desenvolveram modelos próprios, politicamente frágeis e de difícil reprodução, como vemos em Belo Horizonte e em Campinas. Em novembro de 2013, o Conselho Federal de Medicina se pronunciou pela obrigatoriedade da presença dos médicos em CAPS 24 horas, disparando um debate a ser realizado de forma tensa ao longo dos próximos dois anos. Este pronunciamento está contextualizado num embate entre o Ministério da Saúde e o Conselho Federal de Medicina, o que torna obrigatório o questionamento ético deste ataque coorporativo à reforma. Por outro lado, foi atacado um ponto da política frágil e sem resposta há anos, negligenciado no desenho das RAPS.

Entendemos que a cobertura médica dos serviços 24 horas atende não só a uma demanda coorporativa, mas dão segurança às equipes, aos usuários e qualificam as redes de atenção psicossocial como um todo, aumentando sua capacidade de gerenciar crise. Optamos como estratégia adotar uma escala de psiquiatria em três unidades de pronto-atendimentos no município, como referência para saúde mental. Da mesma forma, adotamos uma escala de psiquiatria na regulação do SAMU, o que dá apoio à organização da rede de atenção à crise em saúde mental. Neste ano iniciamos com contratação para psiquiatras em duas das UPAS do município e faremos uma expansão para três ao longo de 2014, na medida em que a rede demandar ampliação de retaguarda psiquiátrica com a expansão do número de CAPS.
Atenção Primária

O processo de reestruturação pelo qual passa a saúde mental do Curitiba tem diversos paralelos na Atenção Primária. Da mesma forma, é emblemática a necessidade da RAPS passar a entender a APS como um dispositivo potente e regulador das ações de rede de saúde mental. A exemplo do discutido na área de urgência e emergência, ainda que haja financiamento através dos NASFs, este é absolutamente insuficiente para o co financiamento para a implantação de uma rede de apoio potente de saúde mental, incluindo psiquiatras e psicólogos. Ainda, a exemplo da discussão sobre atenção à crise, não existe um dimensionamento apropriado da relação entre psiquiatras e psicólogos por equipe de saúde da família. Novamente, a falta de dimensionamento interfere fortemente no processo de trabalho destes profissionais.

Nesta experiência de início de gestão em Curitiba, ao final deste ano também, iniciamos o trabalho de 09 psiquiatras nos Núcleos de Apoio da Família, com a previsão de expansão na medida em que o próprio PSF do município se redimensione. Da mesma forma, duplicamos o número de psicólogos inseridos na atenção primária no mesmo modelo NASF, atuando com matriciamento. O processo de trabalho desenvolvido por estes profissionais mescla apoio matricial a atenção direta. Entretanto, não é possível definir uma tipologia clara do perfil de usuário que se mantém com a equipe de saúde da família como referência e qual passa a ter como referência no CAPS. Da mesma forma, outro ponto de embate com as corporações médicas, é questionável se há espaço neste sistema para o ambulatório de saúde mental. Ou qual seria seu perfil, já que o financiamento por procedimento que existe hoje o viabiliza dentro da rede, existindo aí outra contradição do modelo.

Gestão
Em Curitiba, o sistema ganhou diversos pontos de atuação e grande complexidade, o que demanda estratégias de gestão, que fortaleçam a participação de usuários e trabalhadores e ao mesmo tempo torne possível a unidade da rede, a garantia da integralidade e do acesso. Neste sentido, a experiência de Curitiba será emblemática na medida em que puder articular ações regulatórias, gestão participativa e apoio institucional. Qual a capacidade de um sistema se auto-gerenciar através de formas institucionalizadas de articulação, co-responsabilização na gestão do cuidado e na criação de instâncias de diálogo e de gestão colegiada? Qual a possibilidade de um sistema ter pontos regulatórios de fluxo sem que caia num gerencialismo burocratizante que assume freqüentemente critérios médicos para estabelecer espaços de cuidado preferencial na rede? Como aliar estes dois modelos de organização? A experiência de Curitiba, dotada de apoio político na implementação destas tecnologias, tem potência para formular propostas e se aprofundar na discussão de contradições existentes ainda nesta política nacional. Ao longo deste ano implantamos como estratégia de gestão o apoio em saúde mental nos distritos sanitários, numa experiência nova para o município. Também foi possível trazer para a secretaria municipal de saúde a regulação dos leitos psiquiátricos. Com isso criamos um sistema regulatório multidisciplinar com a capacidade de observar os fluxos, demandas e lacunas assistenciais e promover saídas que ajam no sentido de fortalecer a rede de atenção.

Uma experiência é emblemática quando cria quadros, quando permite protagonismo de usuários, familiares e trabalhadores. Ao longo do ano, criamos um fórum de trabalhadores de saúde mental, que reuniu pessoas envolvidas na mesma rede há muitos anos e que ainda assim não se conheciam. Este fórum ganhou autonomia, esboçou um estatuto e foi regularizado institucionalmente na Conferência Municipal de Saúde deste ano. Após alguns meses de funcionamento, a comissão gestora do fórum estabeleceu limites à participação de gestores no processo, decisão que apoiamos imediatamente. Queremos criar uma rede que gere questionamentos, permita o aparecimento de formuladores e lideranças que tornem visíveis nossas contradições e sugiram saídas. E que neste sistema haja espaço para que estas saídas sejam testadas.  A potência de uma experiência deve ser medida pela expressão dos quadros que ela permite que surjam. Neste cenário nacional que aponta para a grande fragilização da representatividade dos movimentos sociais em saúde mental, esta é uma das maiores contribuições do que vivemos em Curitiba pode trazer. Precisamos nos reinventar como agentes da reforma.