Humanização do Cárcere: Anistia.
As prisões servem a ordem social e ao desejo bárbaro de impor o sofrimento gratuito com que todo bom cidadão tempera seu sono. Pensamos que os assassinos não virão se as cadeias estiverem cheias. A verdade é exatamente o contrário. Mas ninguém quer nada com a verdade.
Eu proponho uma anistia geral para quem cometeu crimes contra a propriedade, mas não atentou diretamente contra a vida. Até porque, contra a vida atentam melhor os empresários, cientistas, jornalistas, médicos, advogados, legisladores, magistrados, generais e governantes. Na arte de matar, quem faz o sistema funcionar é imbatível. A questão é que talvez todos nós sejamos vítimas e artífices do sistema ao mesmo tempo.
A maioria dos óbitos “evitáveis” resultam da incapacidade para eliminar os determinantes estruturais da morte por causas externas. Os acidentes de trânsito, a poluição, a contaminação dos alimentos, da água, a falta de saneamento básico, etc. Nestes casos, ou você condena a humanidade por deficiência congênita em prover segurança; ou condena quem tem mais poder. De qualquer modo, parece que a balança pende para o problema congênito humano, uma vez que pensar que poderosos malvados vem tramando o mal há milhares de anos, depõe seriamente contra os poderes dos homens de bem e/ou a benignidade divina, conforme a crença de cada um.
Caco Barcelos demonstrou em Rota 66 que assassinato no Brasil é uma estatística produzida no atacado. Há uma indústria de limpeza étnico-cultural no Brasil. Ela funciona no sentido de eliminar, seletivamente, homens negros, jovens, pobres em primeiro lugar, como vítimas de assassinatos. Depois homens em geral, jovens, por causas externas, como acidentes de trânsito, violência urbana, doenças contagiosas e consequências do uso suicida de substâncias psicoativas, ou suicídio direto, entre outros agravos, como acidentes de trabalho.
Parece que o truísmo máximo de que violência gera violência também favorece esta proposta da anistia geral para os condenados. Mesmo os homicidas, são produzidos por ações homicidas. Seria, portanto o caso de sermos justos com eles também. Mas, como a verdade, a justiça parece ser a racionalização dos abusos que cometemos contra o outro, como Nietzsche escreveu.
A proposta de anistia parte do princípio de que a sociedade brasileira não conseguiu se organizar para cumprir a Constituição Federal, nem o medieval Código de Direito Penal. O que dizemos ser a razão da ordem e do direito, não colocamos em prática. Mas a vingança contra os que expõem a consequência desta incapacidade é uma de nossas obsessões mais perenes. A população encarcerada no Brasil é objeto da sede insaciável de vingança e violência que nos move.
Dado que esta premissa básica é incontestável, não somos justos com os injustiçados, e que ser criminoso, ou cidadão honesto, é mais uma questão de sorte do que de mérito, a ideia de anistiar todos os traficantes e ladrões (que não tenham sido diretamente responsáveis por crimes que atentem contra a vida) é uma primeira forma de justiça.
O atual estado do sistema carcerário funciona como aparelho de colocação da maioria (que não sabe com quem está falando) em seu devido lugar. Uma garantia que funciona por contraste. Se você olhar para quem está preso, saberá rapidamente quem não deve estar.
De outra parte, o encarceramento serve como suprimento para a demanda de sacrifícios humanos, em nome e honra, do deus consumo. Sociedades obcecadas pela propriedade e pela individualidade são mais violentas, tem mais pessoas encarceradas e todos se sentem inseguros.
Finalmente, o encarceramento de pessoas miseráveis, atua como fonte de saciedade de um desejo de vingança mais específico – o dos muito privilegiados: Considerando que padrão de consumo e posse de bens materiais não são suficientes para livrar os ricos e bem nascidos das desgraças do envelhecimento, da doença e do sofrimento inerente a estar vivo, não importa o que você tenha, é preciso aumentar a desgraça dos pobres. Assim, a comparação torna a riqueza material uma ilusão mais eficiente.
Nossa atual presidente é uma cidadã anistiada. Contra os jovens militantes brasileiros (durante todo o regime de exceção) foi feito o mesmo que o Estado Democrático de Direito faz hoje contra negros e pobres. Se não fôssemos violentamente hipócritas, perceberíamos como o estatuto da anistia significa uma abertura ao devir. Seria uma demonstração de superação do ressentimento, uma afirmação da solidariedade e fraternidade que reconhece que somos multi e inter determinados e que a culpa individual é uma mistificação e uma superstição…
Mas não somos assim. Como minha esposa se deu conta depois de ler e reler Guimarães Rosa. Somos tão. E sermos tão é nossa sina. Grande Sertão Veredas nos ensinou: Ser(tão) entre nossas veredas, cada um pela sua, cada coletivo no seu lugar. Poderíamos ser outros, mas acabamos sendo o que já éramos e o perdão que decidimos dar aos presos e militantes políticos (e a seus algozes) não podemos dar aos seres tomados pela miséria de afeto…
Quem não produz sentido, não tem sentido. E somos muito hábeis em providenciar para que cada vez mais pessoas tenham seu sentido negado. É como se não produzissem nenhum sentido. Na verdade o sentido que elas inventam é negado porque denuncia nossa iniquidade.
Por Sabrina Ferigato
Marco, obrigada por continuar trazendo para a RHS suas discussões tão ricas sobre as belezas e as misérias da vida humana…
Parabéns pelo texto!
abraços