Há uma doce luz no silêncio

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“Há uma doce luz no silêncio, e a dor é de origem divina. Permite que eu volte o meu rosto para um céu maior que este mundo, e aprenda a ser dócil no sonho como as estrelas no seu rumo.“ Os versos de Cecília Meireles bem que poderiam ter sido escritos para aquele momento…

Há poucos dias, um menino de seis anos puxado pelas mãos ansiosas da mãe, entrara no consultório do CAPS. Emitia sons incompreensíveis, olhava de modo nervoso para os cantos da sala e parecia querer fugir dali. A mãe relatava apressada: dificuldade de comunicação, déficit de atenção, isolamento. Havia procurado o clínico geral. O clínico encaminhara ao neurologista. O neurologista encaminhara com “hipótese diagnóstica de autismo” à psiquiatra do CAPS. Assim chegara até ali.

Sentia-se como se sua recente formação em psiquiatria estivesse sendo testada a todo momento. Entre os mais de cem prontuários de pacientes que aguardavam avaliação, os inúmeros atendimentos ambulatoriais diários e agora, diante daqueles olhos assustados, seu antigo sonho de atuar no CAPS parecia não ter mais tanto sentido. Algo se mostrava não muito diferente da experiência anterior no pequeno posto de saúde de Atenção Básica.

Olhara mais uma vez o menino: à sua frente e tão distante. Abordava-o chamando-o pelo nome. Nenhuma resposta. Alterava o tom de voz. Repetia o chamado. Nada. Ele ocupava-se em dirigir seus olhos aos outros lugares da sala. Nenhuma pista de que ele a compreendesse.

O que fazer? Enquanto a mãe continuava a expressar sua angústia e a lançar seus apelos, ela pegou uma folha do bloco de receituários e nela fixou-se. Tentaria não usar palavras. Experimentaria apenas um contato que fosse.

Desejando ter habilidade para desenhar bonito, rabiscou de mau jeito, mas com esforço, uma estrela. A mesma que aprendera a desenhar quando ainda era uma criança. Pousa a caneta ao lado do papel rabiscado e afasta-os em direção ao menino. Devagar, ele pega para si a caneta. Depois, puxa o papel. Lábios pressionados, caneta entre os dedos, desenha: uma, duas, três, quatro…cinco pontas! Uma estrela de cinco pontas! Em seguida, com um sorriso tão brilhante quanto a estrela desenhada, devolve-lhe o papel.

Ela, encorajada pela alegria do contato, investe novamente: desenha rapidamente um coração e empurra o papel em direção ao menino. Ele olha o papel, mas não desenha. Desta vez, fixando nela o seu olhar, une as pontas dos dois polegares e aproxima em curva os demais dedos das duas mãos. O coração! Feito com as próprias mãos, ali estava o seu coração!

Tantas vezes visualizara aquele gesto em outras mãos sem que tivesse o sentido que  havia agora! Um gesto que lhe arrebatava dos seus próprios trilhos… gesto que ultrapassava toda e qualquer palavra. 

Voltava agora ao telefone. Queria saber do menino: “E então? O que o otorrino disse?” A assistente social, do outro lado da linha, repetira o que pensara não ter ouvido: “O otorrino recomenda o uso de um aparelho auditivo.”

A voz do outro lado do telefone provocara-lhe uma alegria diferente. Não era daquelas alegrias arrebatadoras que fazem disparar risos ou gritos. Era uma alegria que tomava  o corpo, atravessava-o em  contenteza  silenciosa  animando a alma e fazendo sorrir todo o ser. Mergulhada no vivido, confirmava para si mesma: conseguira falar ao silêncio dele.  O gesto dele preenchera de luz sua falta de palavras.

Pensou nos sons da infância; o acontecimento trazia aos ouvidos paisagens sonoras: o canto dos passarinhos, grilos em sinfonia, chuva no telhado, vendedor de pirulitos no meio da rua…

De volta à mesa do consultório, dobrou com cuidado o papel com a estrela desenhada. Pensou no silêncio. Pensou que poderia quase tocar a doce luz da poetisa e brincar com ela; juntá-la à estrela do menino e às palavras de Clarice Lispector: “a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio.”

 
Assim, como quem ouve silenciosos e doces fios de luz, guardou o desenho no bolso do amarelado jaleco branco.