Ato médico: tanto faz
em resposta a https://redehumanizasus.net/node/8516
Ato Médico
Não consigo compreender o argumento de que a regulamentação de uma profissão seria contra o interesse público. Pelo contrário, em todos os setores das atividades humanas modernas a regulamentação sempre foi um mecanismo para salvaguardar a população.
Na área da saúde, por exemplo, a regulamentação da Odontologia aboliu os "dentistas práticos", e a regulamentação da Enfermagem busca eliminar aquele funcionário não treinado, que começou no serviço de limpeza, foi subindo de posto até aprender a fazer umas injeções, imobilizações gessadas, e ganhou o título de "enfermeiro".
É óbvio que a regulamentação é necessária. Mas ela ocorre num palco de debate político – algumas forças podem não se sentir representadas no resultado final, mas a derrota das minorias significa a vitória da maioria.
Ampliar o debate do ato médico, embarcando assuntos aliens como proletarização dos médicos, carga horária, plantões, etc, é um desserviço ao debate em questão.. Essas outras questões devem ser resolvidas sim, mas uma coisa de cada vez.
A questão do ato médico é simples: quais são as prerrogativas legais que limitam a atividade do médico? O que impede um médico de praticar a fisioterapia, ou ainda, de fazer obturações nos dentes dos cidadãos brasileiros? É necessário haver uma limitação legal? Perguntas simples às vezes não têm respostas simples. (De onde viemos? Prá onde vamos?)
O ato médico realmente não afeta a maioria dos médicos. Mas isso ocorre pelo nosso modelo de saúde, fortemente determinado pelo tecnicismo e pela atenção privada. E é por isso que o ato médico não interferirá em nada na vida da maioria dos médicos. É só perguntar às gestantes sobre o que consideram mais adequado: fazer pré-nalal com médico ou com enfermeiro? Ou ainda, fazê-lo com Médico Generalista, ou com Obstetra? Os consultórios particulares de Obstetricia estão lotados – muitas mulheres fazem o pré-natal de forma privada, e têm seus bebês na rede pública (somente na hora do parto o SUS têm garantido atenção especializada à gestante).
Como se vê, a resposta a essas questões lança uma luz sobre o que pensa a população – os principais interessados – a respeito.
A lei do Ato Médico não veio prá resolver nada na vida dos médicos. Veio prá defender o interesse da população.Permitir que Enfermeiras prescrevam, ou que Fisioterapeutas façam o diagnóstico, é um crime nas condições atuais, considerando que suas profissiões não são voltadas para o diagnóstico, mas para o ato de cuidar, em si. As profissões que atuam na equipe parceira são voltadas para o ato terapêutico, ou para educação em saúde. Não estão voltadas para o diagnóstico e a indicação terapêutica. Na divisão de tarefas das equipes de PSF, isso deveria estar claro. A polêmica vazia sobre o ato médico busca apenas turvar esses limites – como o diabo que senta no próprio rabo prá apontar o rabo dos outros, os profissionais parceiros são corporativistas ao defenderem seus pretensos direitos de atuação, e querem cercear a atividade médica, ou ainda, apoderar-se dela. Por quê a enfermagem não permite os Agentes de Saúde aferirem PA? Essa não é atitude corporativista? Dois pesos, duas medidas. Corporativismo aberto na defesa da sua profissão, corporativismo velado na acusação das atividades das outras.
O reflexo disso é a indiferença por parte dos médicos tecnicistas.Um amigo me falava abertamente: a Sociedade Brasileira de Neurocirurgia, p. ex, não se preocupa com o ato médico, porque ninguém é doido de fazer uma trepanação sem ser treinado. E nenhum gestor hospitalar é doido de deixar alguém não treinado fazê-lo no bloco cirúrgico que adminstra.
Mesmo que os "contras ao ato médico" não considerem que o Médico deva ser o responsável legal pelo diagnóstico, e pela indicação terapèutica, alguém deve sê-lo. Quem será o responsável por diagnosticar Amigdalite bacteriana, ao invés de Meningite? Quem assumirá essa responsabilidade? Quem assumirá a responsabilidade de indicar dieta para um obeso, tendo antes descartado a possibliidade de Síndrome de Cushing avançada? Vocês sabem indicar alguém melhor? Então façam-no. Ser contra pura e simplesmente é fácil. Duro é propor soluções plausíveis.
Os médicos sempre soubemos indicar ao paciente o tratamento mais adequado, e encaminhá-lo ao profissional mais apto para fazê-lo. Fazemos isso todo dia, ao encaminhar o abdome agudo cirúrgico para o Cirurgião, ou algumas tenossinovites para o Fisioterapeuta. Mas a indicação é responsabilidade de quem indica.
Se os médicos não somos aptos a fazê-lo (pode ser essa a conclusão da sociedade) então teremos que encontrar alguém que seja.
Alguém não médico se habilita?
Sobre as questões outras;
Plantões: na nossa sociedade 24h, alguém tem que fazê-lo. Com ou sem cansaço no dia seguinte.
Horário de trabalho. Realmente, o Médico de Família deve cumpri-lo. Encontrem maneiras legais de fazê-lo cumprir. Mas que os gestores tomem a atitude honesta de pagar para que o médico cumpra o horário. A máxima de que "as prefeituras fingem que pagam, os médicos fingem que trabalham" contamina todo o SUS.
Se os gestores pagarem bem, poderão dispensar os irresponsáveis, que haverá fila de espera de médicos para substitu´-los. Mas isso não ocorre, pq as prefeituras preferem fazer "economia" porca com o dinheiro público. Isso quando não estão interessadas em desviá-lo. Gostando, ou não, o salário (alto) do médico é determinado pela lei de mercado. O comunismo acabou.
A redução de horário de trabalho com manutençaõ dos salários é reinvindicaçaõ do século passado, dos movimentos proletários já derrubados. O mundo agora é outro. Gostando, ou não, o que vale agora é a flexibilização das leis trabalhistas,. Trabalhou mais, ganha mais. Parece justo, não é mesmo?
Prá finalizar: ATO MÉDICO: TANTO FAZ!
Não vai fazer diferença mesmo….. Os problemas do SUS não são os médicos, mas a má gestão.
Por Shirley Monteiro
Reduzir os problemas só a má gestão me parece muito simplório. É PROBLEMA DE GESTÃO SIM, MAS EXISTE UMA CO-RESPONSABILIZAÇÃO que é de todos.
Vale lembrar ainda que na gestão das Unidades bem como dos níveis centrais, e dos distritos temos muitos médicos !!!
Voce reduz aqui as consequências do projeto de Lei do "Ato médico" como inerentes apenas a questões de diagnóstico, quando não é só isso. Algumas decisões precisam ser tomadas em conjunto, com o parecer de equipe interdisciplinar avaliando em interconsultas projetos terapêuticos e condutas. Vivi isso por 19 anos em uma Unidade de referência no tratamento de reabilitação e estimulação precoce a crianças portadoras de necessidades especiais, síndromes genéticas e neurológicas. E a neuropediatra, colega e amiga pessoal da equipe sempre valorizou e reconhecia a necessidade do olhar , parecer e diagnósticos psicológicos, fonoaudiológicos, fisioterápicos, e isso é sabedoria e ética que refletia na qualidade do atendimento aos nossos pacientes e á família; para nós igualmente valioso se fazia seu acompanhamento neuropediátrico constante, que inclusive não podia ser substituído pelo olhar de um simples neurologista, que não fosse especialista em Neuropediatria. Saber trabalhar de igual para igual, e coletivamente é um avanço para cada um de nós, e para a Humanidade. O SUS QUE DÁ CERTO faz parte desse avanço.
E MAIS : Estudos mostram que nem sempre "os médicos sempre sabem indicar ao paciente o tratamento mais adequado" quando falas "Os médicos sempre soubemos indicar ao paciente o tratamento mais adequado, e encaminhá-lo ao profissional mais apto para fazê-lo. Fazemos isso todo dia, ao encaminhar o abdome agudo cirúrgico para o Cirurgião, ou algumas tenossinovites para o Fisioterapeuta. Mas a indicação é responsabilidade de quem indica."
POR EXEMPLO, usuários da emergência dos hospitais brasileiros chegam agonizantes por tentativa de suicídio, seja por ingestão de substâncias químicas, por atear fogo ao corpo, ou por cortes profundos … sendo atendidos pela equipe médica, e recebendo alta sem encaminhamento para profissionais psi, psicólogos ou psiquiatras; de modo que permanecem sem o cuidado específico de que necessitavam, muitas vezes voltando a tentativa de suicídio "com exito", por falta de encaminhamento médico. Por isso enfermeiros e outros profissionais devem e podem sim, realizar tais diagnósticos e encaminhamentos, trata-se de uma questão ética ! São dados de uma tese de Doutorado com pesquisa realizada em um Hospital Geral de URGÊNCIA EMERGÊNCIA.
E MAIS EXEMPLOS : Várias crianças da Unidade a que me referi anteriormente, chegam atrasadas em anos para iniciar tratamentos de estimulação precoce frente às síndromes de atraso de desenvolvimento neuro-psico-motor porque pediatras não conseguem perceber os sinais básicos do ADNPM e não encaminharam corretamente seus pacientes para colegas geneticistas, neuropediatras e outros; sendo esta habilidade de detectar tais sinais ( ADNPM) muito presente em fisioterapeutas, fonoaudiólogos e psicólogos que fazem parte desta equipes infantís.
Muito cuidado com as generalizações.
Um abraço, de respeito à diferenças de opinião.
Shirley Monteiro.