Os Indiferentes

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             Antonio Gramsci

 

Já fui parado muitas vezes nos corredores com um questionamento que invariavelmente vai na seguinte direção: "Pra que esse negócio de humanização? As  coisas sempre foram assim e continuarão sendo. O que importa é as pessoas terem uma boa formação técnica."

 

Claro, um dos nossos desafios é dizer de que humanização falamos etc etc. Outro desafio é ultrapassar uma certa crosta de indiferença que se expressa pela cultura do fatalismo, alimentada pela cristalização dos processos de trabalho que muitas vezes normalizam a barbárie e a insensibilidade.

 

Recentemente tivemos o exemplo da mulher às portas do parto que pereginou pelas ruas do Rio de Janeiro com o "percurso" do ônibus anotado no braço por um profissional de saúde. Agora em Santos uma mulher deu à luz numa sala de espera porque "displicentemente" saiu às pressas de casa sem os documentos, Não podendo provar quem era não podia ser internada. Sua condição de ser humano gerando outro ser humano foi colocada em segundo plano diante da falta da carteira de identidade.

 

Estamos sendo assaltados pela indiferença à vida. A forma como muitos serviços de saúde estão "acolhendo" quem vai nascer e quem vai morrer expressam situações limites de um mesmo fenômeno: a coisificação das pessoas e a lenta e gradual transformação da vida em objeto redútível a lógica econômica das relações de troca.

 

Lembrei-me então de um texto de Antonio Gramsci publicado em 1917 no calor da luta polítifca na Itália. Como uma boa peça de Shakespeare, temos a impressão que pequenas adaptações aqui e acolá reatualizam o texto, como se mudássemos as vestes de Hamlet e tornássemos mais contemporâneas as expressões idiomáticas.

 

A barbárie se consolida na medida em que nos acomodamos na indiferença. Existem caminhos para sairmos dessa acomodação? Deixo com vocês o belo e fluído texto de Gramsci. Vale a pena a sua utilização em oficinas onde percebemos grupos de trabalhadores "acomodados" na inércia do fatalismo! Algumas adaptações podem ser feitas na linguagem e nas expressões. Sendo por uma boa causa, com certeza Gramsci não se importaria!

 

INDIFERENÇA

 

"Odeio os indiferentes. Como Friederich Hebbel acredito que "viver significa tomar partido". Não podem existir os apenas homens, estranhos à cidade. Quem verdadeiramente vive não pode deixar de ser cidadão, e partidário. Indiferença é abulia, parasitismo, covardia, não é vida. Por isso odeio os indiferentes.

A indiferença é o peso morto da história. É a bala de chumbo para o inovador, é a matéria inerte em que se afogam freqüentemente os entusiasmos mais esplendorosos, é o fosso que circunda a velha cidade e a defende melhor do que as mais sólidas muralhas, melhor do que o peito dos seus guerreiros, porque engole nos seus sorvedouros de lama os assaltantes, os dizima e desencoraja e às vezes, os leva a desistir de gesta heróica.

A indiferença atua poderosamente na história. Atua passivamente, mas atua. É a fatalidade; e aquilo com que não se pode contar; é aquilo que confunde os programas, que destrói os planos mesmo os mais bem construídos; é a matéria bruta que se revolta contra a inteligência e a sufoca. O que acontece, o mal que se abate sobre todos, o possível bem que um ato heróico (de valor universal) pode gerar, não se fica a dever tanto à iniciativa dos poucos que atuam quanto à indiferença, ao absentismo dos outros que são muitos. O que acontece, não acontece tanto porque alguns querem que aconteça quanto porque a massa dos homens abdica da sua vontade, deixa fazer, deixa enrolar os nós que, depois, só a espada pode desfazer, deixa promulgar leis que depois só a revolta fará anular, deixa subir ao poder homens que, depois, só uma sublevação poderá derrubar. A fatalidade, que parece dominar a história, não é mais do que a aparência ilusória desta indiferença, deste absentismo. Há fatos que amadurecem na sombra, porque poucas mãos, sem qualquer controle a vigiá-las, tecem a teia da vida coletiva, e a massa não sabe, porque não se preocupa com isso. Os destinos de uma época são manipulados de acordo com visões limitadas e com fins imediatos, de acordo com ambições e paixões pessoais de pequenos grupos ativos, e a massa dos homens não se preocupa com isso. Mas os fatos que amadureceram vêm à superfície; o tecido feito na sombra chega ao seu fim, e então parece ser a fatalidade a arrastar tudo e todos, parece que a história não é mais do que um gigantesco fenômeno natural, uma erupção, um terremoto, de que são todos vítimas, o que quis e o que não quis, quem sabia e quem não sabia, quem se mostrou ativo e quem foi indiferente. Estes então zangam-se, queriam eximir-se às conseqüências, quereriam que se visse que não deram o seu aval, que não são responsáveis. Alguns choramingam piedosamente, outros blasfemam obscenamente, mas nenhum ou poucos põem esta questão: se eu tivesse também cumprido o meu dever, se tivesse procurado fazer valer a minha vontade, o meu parecer, teria sucedido o que sucedeu? Mas nenhum ou poucos atribuem à sua indiferença, ao seu cepticismo, ao fato de não ter dado o seu braço e a sua atividade àqueles grupos de cidadãos que, precisamente para evitarem esse mal combatiam (com o propósito) de procurar o tal bem (que) pretendiam.

(…)

Odeio os indiferentes também, porque me provocam tédio as suas lamúrias de eternos inocentes. Peço contas a todos eles pela maneira como cumpriram a tarefa que a vida lhes impôs e impõe quotidianamente, do que fizeram e sobretudo do que não fizeram. E sinto que posso ser inexorável, que não devo desperdiçar a minha compaixão, que não posso repartir com eles as minhas lágrimas. Sou militante, estou vivo, sinto nas consciências viris dos que estão comigo pulsar a atividade da cidade futura que estamos a construir. Nessa cidade, a cadeia social não pesará sobre um número reduzido, qualquer coisa que aconteça nela não será devido ao acaso, à fatalidade, mas sim à inteligência dos cidadãos. Ninguém estará à janela a olhar enquanto um pequeno grupo se sacrifica, se imola no sacrifício. E não haverá quem esteja à janela emboscado, e que pretenda usufruir do pouco bem que a atividade de um pequeno grupo tenta realizar e afogue a sua desilusão vituperando o sacrificado, porque não conseguiu o seu intento.

Vivo, sou militante. Por isso odeio quem não toma partido, odeio os indiferentes."

 

La Città Futura, 11-2-1917