A voz, a doença, o professor. A saúde do trabalhador em educação e a medicalização da vida.
Como parte das ações do Fórum sobre Medicalização e da Sociedade, tenho acompanhado um grupo de profissionais da saúde e da educação para refletir sobre as demandas do executivo aos serviços de saúde. Na cidade do Rio de Janeiro existe a Lei do TDA que com um viés retrógrado do processo saúde-doença visa classificar todos os educandos em com ou sem transtorno.
Em um desses encontros com coordenadores pedagógicos, me deparei com vários coordenadores que relatavam a sua impotência ante o sistema educacional onde a escola, nos territórios carentes de recursos públicos, muitas vezes é o único representante do Estado e canal das mais diversas demandas.
A voz exaltada desses coordenadores me lembrou um cenário que já tinha vivido anteriormente, em outra cidade. Em 2009, em Belo Horizonte, integrei uma pesquisa sobre adoecimento do professor.
Fato analisador de nosso tempo: porque é a escola o local de produção de corpos doentes?
Gostaria aqui de dividir a fala que fiz em 2012 em uma mesa da Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia, que apontava para a necessidade de enfrentarmos essa questão.
Apesar do texto longo, copiado integralmente do meu repositório acadêmico, gostaria de pensar ele como um canal de comunicação. Será que estamos realmente ouvindo esses profissionais de educação que encaminham educandos aos serviços de saúde com queixas escolares? Como acolher a demanda?
Uma coordenadora, com voz exaltada, me disse: ninguém quer saber o que o professor diz. A gente fala que ele tem problema de aprendizado porque é nisso que somos treinadas, eu não posso falar que ele tem algum problema de saúde, não sou médica!
E a saúde desse profissional na educação, que no chão da escola tenta todo o dia atualizar o artesanato que é educar diante do cenário totalizador das políticas públicas, como temos acolhido ele?
Medicalização: O que os fonoaudiólogos têm a ver com isso?
Há cerca de três anos recebi um convite inusitado. Ser o ‘antropólogo’ de uma pesquisa que estava sendo desenvolvida dentro da Faculdade de Medicina da UFMG.
A pesquisa era a seguinte: avaliar a adesão ao tratamento de professores com disfonia no serviço público de atendimento fonoaudiológico.
Em um dos grupos focais que realizamos para tentar compreender as concepções de adoecimento entre os professores, um fato me instigou. Que problemas de saúde e fonoaudiológico poderiam ter esses professores que falavam de maneira clara e muito calmamente sobre os seus problemas vocais? Leigo no assunto, não poderia fazer muito além de escutar o que diziam esses professores.
“Eu tenho um nódulo” dizia um professor.
“Ah, eu não tenho mais força na voz” dizia uma professora.
“Eu sou disfônica" dizia a outra.
Enquanto uma questão de uma parte do corpo, o problema do professor com a sua voz era algo físico, orgânico, funcional e pessoal. Eu sou disfônico, repetiam eles. Mas quando o rumo da conversa abordava as questões das condições do trabalho, do cotidiano das atividades docentes, as 'veias' do pescoço saltavam, a face enrubescia e a voz desses professores tremia e falhava. Nesse ponto uma receita mágica era prescrita.
“Ai meu Deus, é só eu me lembrar que tenho que entrar naquela sala difícil que eu fico nervosa, fico rouca, minha voz treme, fico até sem ar. Aí eu bebo um café com umas gotas de Rivotril® e volto a falar com calma e entro em sala.”
É em cima da fala dessa professora com ‘distúrbios vocais’ que eu gostaria de pensar com vocês as questões da medicalização da sociedade, mas sobretudo na educação.
Proponho manter minha reflexão levando ao extremo a indicação dessa professora. A voz que treme, falha e não quer dizer expressa um fato: a escola é o local onde ela adoece.
É quando ela se lembra, mesmo que longe do seu serviço, no seu café da manhã, que precisa entrar em sala, que o seu adoecimento acontece. Sua voz treme e some.
Mas o que isso tem a ver com medicalização?
Vocês podem imaginar que essa seja uma cadeia lógica. Professor estressado, classe cheia, um nódulo vocal, um Rivotril® para acalmar.
Medicalização como auto-medicação, como medicação excessiva.
Certo?
Errado.
Na verdade a medicalização dessa professora inclui, mas não se limita ao Rivotril® em gotas, se ela tomasse florais de Bach para o mesmo efeito ela continuaria dentro da lógica medicalizante.
Por quê?
Porque ela continuaria afirmando, eu sou disfônica, mas agora sob tratamento com florais de Bach.
Esse era um dado que me assustava. Os professores, mesmo quando tinham pequenos graus de rouquidão se exaltavam quando o assunto era escola. Era nesse espaço, na escola, seja dentro ou apenas imaginando ele, que esses professores apresentavam agravantes desses sintomas do distúrbio da voz.
Os professores ficavam roucos dentro do ambiente escolar, mas eles se consideravam disfônicos, doentes, para a vida toda. Dentro do grupo, o que seria um qualificativo, uma descrição, um diagnóstico, pessoa com disfonia, tornava-se um substantivo. “Eu sou disfônico” e essa frase começava a ser relembrada em diferentes momentos e utilizada como explicação e justificativa para qualquer momento.
"Eu sou disfônica" era um termo utilizado para justificar mudanças drásticas na dinâmica e relações sociais, "não posso mais cantar", "não posso mais beber", "não posso mais sair com meus amigos".
Ou seja, a medicalização não está relacionada somente ao ato de prescrever remédios, mas a um aparato que inclui diagnósticos, testes, exames de imagem, discursos, e sobretudo uma lógica que tenta internalizar diversos problemas e variáveis como uma questão do individuo e do seu corpo biológico, indivíduo que aprende uma nova forma de sofrer e de se relacionar com os outros.
Para essa professora, a sala cheia, os alunos inquietos, seu uso inadequado de Rivotril®, tudo isso era culpa dela, que forçou a voz e ficou rouca. "Eu sou disfônica".
Vamos retornar ao espaço da escola então como local de enunciação, fabricação e atualização desses corpos doentes. E se de um lado eu penso nessa professora com problemas de voz que toma seu café tarja preta puro, do outro lado da sala de aula nos deparamos com uma situação que apresenta a mesma lógica.
Crianças agitadas, ‘lentas’, ‘lerdinhas’, ‘difíceis’, ‘quietas’, ‘revoltadas’ sempre foram uma dificuldade na sala de aula. Não fazem o que esperamos deles, acionamos pais, médicos, oftalmos, psicólogos, fonos. Mas essa rede de atenção necessária e comum começa a mudar de ares.
A mudança é sutil, mas poderosa. Se antes dentro da sala de professores a fofoca era, "aquele aluno é burro", "nossa, aquele é um capeta", "eu acho que aquele é um retardado". Começamos a ouvir, "ele tem déficit de atenção", "ele é hiperativo", "eu acho que ele é disléxico ou tem espectro de autismo".
Invocar esses nomes não é simplesmente uma mudança nas formas de fazer fofocas sobre os alunos. A descrição dessas crianças com nome de doenças apresenta um problema de fundo, o modo como esse discurso cria não somente a doença, mas o doente e, consequentemente, a sua falência social.
Esse é um debate antigo. Estamos no campo de gestão das diferenças e àqueles que fogem da normalidade precisam ser controlados, descritos, delimitados e tratados.
O conceito de medicalização é um modo específico de fazer a gestão de diferenças. Ou seja, medicalização é esse fenômeno social contemporâneo que transforma questões contextuais, conjunturais, fatos dentro da história pessoal do indivíduo e a diversidade humana em patologias de ordem biológica, individual e inerente ao organismo dessa pessoa. Um organismo que cada vez mais limita-se ao cérebro e em suas funções neurológicas.
Nesse processo, as doenças são estritamente disfunções de um corpo biológico, uma lógica que exclui qualquer variável cultural e subjetiva.
Pensar em medicalização é pensar no conceito de indivíduo moderno, mas aqui cabe discorrer sobre uma possível crítica. Se vivemos o mundo da ascensão do indivíduo, porque tanta energia para criticar uma questão que exprime um retrato de uma época? E se ao fim e ao cabo, dislexia, TDAH, hiperatividade e tantos outros distúrbios clinicáveis só são realizados com base em pesquisas científicas? Não estaríamos dentro de um quadro de diagnósticos equivocados?
Para responder essa pergunta é necessário pensar como se produz a pesquisa na área de saúde. Para discorrermos sobre essa questão não podemos nos esquecer que, nos dias de hoje, grande parte das pesquisas são financiadas pela indústria farmacêutica que por sua vez atrela, desde os fins do século XX, os seus setores de pesquisa ao de marketing.
Ações de marketing que incluem desde o financiamento a pesquisadores ao treinamento para uso de novos produtos, como kits de diagnóstico e remédios, assim como o apoio a associações de pacientes.
A ciência, no campo da saúde, é composto por esses atores. Marketeiros sem fronteira e sem preconceito, que passam seus conhecimentos aos médicos, pacientes, professores e alunos, um cenário idílico de compartilhamento do conhecimento, de comunicação e promoção da saúde, se não fosse o fato de serem, todos, interessados em vender mais e melhor os seus produtos. Seria um círculo limitado aos profissionais de saúde, se nesse processo – de levar seus remédios e kits de diagnóstico como produtos científicos a professores, estudantes e pacientes – o departamento de marketing da indústria farmacêutica não tivesse inventado essa lógica de desenvolver sintomas, espalhar preocupações e criar doenças: medicalizar a sociedade.
Fiel ao pressuposto da ciência enquanto pesquisa, gostaria de compartilhar alguma ciência antropológica. O que podemos afirmar é que o biológico não precede o cultural, mas são construções concomitantes. Basta ver os infindáveis exemplos dos diferentes modos de compreender, usar e testar o corpo em diferentes épocas e locais. Nossa sociedade ocidental inventou a ciência biológica (biologia) ao mesmo tempo que inventou a ciência do costume (antropologia).
Como provocação final, enquanto profissionais cientificamente treinados e eticamente comprometidos, até que ponto estamos atentos para ouvir essas vozes que falam sobre essa estigmatização social repleta de jargões científicos? Até que ponto discutimos o atendimento desses pacientes que chegam aos nossos serviços cheios de certezas da sua incapacidade pessoal e defeito genético-biológico, e que nos contam suas histórias com vozes roucas, letras tortas ou olhar desatento?
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Por Maria Luiza Carrilho Sardenberg
E o efeito clínico-político de teus escritos é o de um norte para as práticas!