RAPS, Assistência Social e Educação.
Os três únicos setores da proteção social que não podem regurgitar a sua demanda, que devem atende-la em qualquer situação são a saúde, a assistência social e a educação. Não trata-se de que não reprimam a demanda de uma ou outra forma. Sempre que estrutura, ou condições sociais são desculpa, os usuários acabam sem atenção. O caso é que as necessidades de saúde, educação e assistência social são universais.
No entanto, as necessidades de que tratam esses três setores estão relacionadas aos determinantes que entram na esfera das relações familiares e comunitárias. Ou seja, escapam da governabilidade direta desses três setores. Do mesmo modo que não se espera do judiciário a eliminação do crime, mas tão somente a retribuição que indiretamente, poderia coibir a criminalidade. Então, a saúde e o bem estar das pessoas podem ser promovidos e favorecidos pelos sistemas de proteção social. Mas estes sistemas são reativos e limitados em sua capacidade de promover o bem estar. Quando são necessários, os dispositivos familiares e comunitários, já faliram.
Reconstituir o tecido das relações sociais e familiares é uma tarefa, em certa medida, impossível. Muitas vezes eles nunca existiram. Essas relações estão submetidas a linha do tempo e não podemos, simplesmente, desfazer o que já foi feito. As instituições de proteção e bem estar social podem instituir uma possibilidade existencial pós-trauma, após a negligência e após o abuso. Porém, não podem apagar completamente os efeitos da ruptura dos laços afetivos.
Há ainda que ter em mente o elemento trágico presente nas situações reais da vida. Quando o certo e o certo colidem, em situações complexas, sobrevém a tragédia. Por exemplo:
– Pensemos num usuário colhido em uma rede de afetos mediadas pelas ações do comércio ilegal de substâncias. Ele se considera, levado a atividade criminosa para evitar que um padrasto abuse de seus irmãos menores. Afinal armado ele tem uma autonomia para intimidar o abusador. Ao responder a uma necessidade legítima ele também se torna concretamente um criminoso e vem a ser preso. Uma vez preso ele pode ser compelido a levar suas irmãs para servirem na visita íntima ao prefeito de galeria de um presídio. Ele deve permitir que sua vida seja destroçada em uma série de estupros ou deve levar a irmã a sacrificar sua integridade por sua segurança? Não podemos responder a esse dilema, sem pelo menos fazermos o esforço de imaginarmos o que pode ser estar imerso pessoalmente nele.
A lógica da prevenção é sempre necessária e deve ser executada no próprio ato de cuidado. Articular o cuidado é tarefa flutuante, dependendo da implicação de cada ator e do formato de seu vínculo. O conjunto de recursos reais que estão disponíveis a cada instante não é infinito, nem plenipotente, entretanto, não são, meramente dicotômicos. Não é que existam ou não existam. Há sempre uma pluralidade de estratégias possíveis que variam em eficácia e, portanto, em resultados.
Nossa implicação com esse cenário denso é complexa. Exige que nos cuidemos, que nos preparemos para um cenário trágico. Nossa forma de tratar o cuidado tem suas marcas culturais e historicidades peculiares. A internação psiquiátrica é um mito moderno. Todos acreditam reiteramente em sua eficácia, ainda que seu fracasso seja tão alto que o efeito da internação é mais grave que os das doenças que pretende tratar. Infelizmente, não temos solução para a falência dos núcleos familiares.
Não sabemos o que fazer com as pessoas a que ninguém mais dirige um gesto de carinho que não seja remunerado profissionalmente. Precisamos pensar no significado que há em ser cuidado apenas por pessoas pagas para executar o cuidado. Isso não é evidente no ato de cuidar. No entanto, grita a nossa subjetividade quando somos nós que recebemos o cuidado. Por isso em uma internação o papel das visitas, das interações por redes sociais é tão importante. O mesmo em um velório. Para quem sofre a perda, o carinho é determinado muito mais por quem vence a negação da morte e vai te dar um abraço, do que pelos coveiros que cavam e cobrem a sepultura.
Há que se integrar o cuidado institucional com o papel dos vínculos dos núcleos familiares, das amizades e laços comunitários em que os usuários estão inseridos. Não é possível reabilitar, ressocializar e cuidar apenas institucionalmente. Mesmo a prevenção é uma forma de agir no mundo delimitada por nossa concepção da responsabilidade que temos com nossos entes queridos.
Não podemos naturalizar os aspectos mais agudos da realidade. Essa é a grande armadilha da racionalização. O fato de que realidade está instituída, não diminui o aspecto de que a realidade está, também, sempre sendo instituída. A quarta dimensão temporal, que para nós, as vezes é invisível, tem a dinâmica de que nada permanece instituído ao longo do tempo. Porém, sempre está instituída a cada instante que resolvemos tratar ou analisar um dado recorte do real. Pensamos que paralisando o tempo mentalmente, podemos estar afastando o desenlace de nossa própria vida. Esse é um efeito ilusório.
Tomamos o pensado como sendo o “real”. Mas o real é a soma de tudo o que é historicamente pensado, na forma do espírito de uma época. Em parte é isso. Mas deve-se acrescentar, ainda, os aspectos da realidade que nos afetam a despeito do que pensamos.
Finalmente, a ideia de encaminhar o usuário deve ser fundada na noção de somar dispositivos e esforços. Não podemos pensar o encaminhamento como a atribuição de um destino, como enviar o usuário a seu verdadeiro lugar no mundo. Não existe esse lugar. Não importa se é o CAPS que recebe ou encaminha; Não importa se o próximo passo é o SRT ou o programa “minha casa, minha vida”. Eles são dispositivos em rede que são partes de um conjunto de recursos para interferir no destino, para mudar trajetórias e não meramente realizar um roteiro pré-estabelecido. A linha do cuidado tem esse caráter de prover um fluxo dinâmico, baseado em evidências, constantemente avaliado e reavaliado, específico para acolher os Projetos Terapêuticos Singulares.
Por Pablo Dias Fortes
Muitas questões se desenham no espaço de legibilidade desse post, Marco. Mais uma vez, suas reflexões têm esse ímpeto de nos aguçar o pensamento em direção aos pressupostos que, talvez até inconscientemente, "gostaríamos" de esquecer. Viver (também) é barra, tecido delicado de sentimentos que deveríamos compor comunitariamente, ativando aí, portanto, as partículas mais potentes e socialmente vinculantes. Mas talvez isso implique um aprendizado doloroso: desejar não mais, e de forma tão apressada, a superação de nossa(s) vulnerabilidade(s), mas partir daí mesmo ao encontro com o outro, na certeza de que as próprias diferenças partilham um modo de ser comum. Esse o dilema que entrevejo diariamente entre a produção discursiva da saúde e o problema mesmo do vínculo/acolhimento. Parabéns e obrigado pelo diálogo!