Segue a discussão sobre o controverso TDAH
Recentemente uma jornalista me contatou para uma entrevista que discutiria o TDAH como expressão do fenômeno da medicalização em crianças e adolescentes. Infelizmente, porém, a edição do material acabou por comprometer o conteúdo da entrevista; pensei em compartilhá-la por aqui (na íntegra) – para que o material não se perdesse e para que pudéssemos fazê-lo circular na rede. Segue abaixo o roteiro de perguntas seguido das minhas respostas.
AbraSUS!
Ricardo Brasil.
1 – Houve banalização no diagnóstico do TDAH em crianças? Se sim, qual seria a melhor forma de se diagnosticar a doença?
Resposta: Acho muito difícil sustentar a ideia de que não houve e de que não há banalização. Primeiramente é preciso dizer que a discussão sobre o controverso Transtorno do Déficit de Atenção (com ou sem Hiperatividade) transcende a questão da banalização de diagnósticos; o próprio transtorno está em discussão no âmbito da Medicina e a única pesquisa de metanálise – que apresenta à comunidade científica uma revisão sistemática da produção acadêmica – sobre tratamento de TDAH (realizada num centro canadense de excelência em Medicina), revela que, num período de três décadas, apenas 12 dos 10.000 trabalhos publicados sobre o tema preenchem critérios mínimos de cientificidade. Ou seja, a polêmica em torno do TDAH está para além da banalização dos diagnósticos e tratamentos. Mas vamos nos ater à questão da banalização: o Brasil é o segundo país do mundo em que mais se prescreve o cloridrato de metilfenidato para o tratamento do suposto transtorno (fica atrás apenas dos Estados Unidos). Recentemente, a Secretaria Municipal de Saúde da Prefeitura de São Paulo baixou uma portaria (Portaria 986/2014) que institui a regulamentação da dispensação do medicamento por meio de um protocolo que envolve a análise de uma equipe multiprofissional (iniciativa inspirada na experiência exitosa de Campinas, iniciada em 2012, impulsionada pela militância de profissionais e pesquisadores hoje ligados ao Movimento Despatologiza e apoiada por pessoas da Coordenadoria de Saúde Mental, pelo Departamento de Pediatria da UNICAMP e pelo Conselho Regional de Psicologia de São Paulo). Decisão importante (a meu ver, um avanço) que reflete um estudo da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) que, por sua vez, aponta, no Boletim de Farmacoepidemiologia, para um crescimento alarmante na prescrição do remédio. Mas quero enfatizar que a questão não se reduz à banalização – motivo pelo qual não posso responder ao que você me pergunta sobre a forma de se diagnosticar a doença. Embora não seja médico, sou psicólogo e, portanto, também falo a partir de um lugar de ciência. Ora, se a discussão sobre a entidade nosológica ainda não está resolvida nos domínios da ciência, como é possível falar em diagnóstico, tratamento e prognóstico? Penso que minha resposta – no caso, colocada como questão – nos dê a dimensão da seriedade do problema quando falamos de TDAH.
2 – Hoje, praticamente todas as crianças diagnosticadas com o transtorno fazem uso de Ritalina e Concerta? Quais os melhores tratamentos para o transtorno?
Resposta: Mencionei acima um resultado da pesquisa de metanálise da Universidade de McMaster (Canadá). Pois bem, voltemos a ela: os 12 trabalhos que preenchem critérios mínimos de cientificidade são, curiosamente, os trabalhos que indicam a orientação familiar como método interventivo mais seguro, eficaz e confiável para o tratamento de crianças diagnosticadas como portadoras de TDAH. Mesmo assim, temos essa contradição que você aponta na pergunta e faço questão de reiterar aqui: a associação entre o diagnóstico e o tratamento medicamentoso é praticamente imediata. Não à toa as logomarcas dos laboratórios farmacêuticos foram inseridas na homepage do site oficial da associação brasileira do transtorno. Quanto à questão dos melhores tratamentos, veja… não falarei em termos de tratamento, mas tomarei de empréstimo uma expressão muito bonita que o importante Instituto Alana tem como missão: "honrar a criança". É basicamente isso que precisamos fazer e isso é urgente. Precisamos lembrar da criança de gerações anteriores que tinha tempo e espaço para brincar, que – além da escola – não tinha uma agenda sufocante de compromissos, que não era presa do consumismo desenfreado (não tanto quanto hoje), que não era bombardeada por mil estímulos e tecnologias o tempo todo, enfim… isso não é para sermos nostálgicos/saudosistas, mas para refletirmos, enquanto sociedade, sobre o momento em que "perdemos a mão" e tentarmos resistir o quanto pudermos a um mundo que, a meu ver, está voltado contra a criança e, portanto, contra o humano.
As imagens acima foram extraídas de uma campanha publicitária de automóvel. A peça fez circular o elogio de "uma vida elevada ao cubo", explicitando o caráter ideológico da propaganda que nega-se à reflexão acerca do mundo no qual opera e pode, portanto, ser considerada como propaganda irresponsável.
E, claro, é preciso escutar a criança. É preciso acolher e validar seus conflitos, suas necessidades, suas mil maneiras de estar no mundo. Evidentemente que não é o caso de ser negligente caso algum tipo de tratamento especializado seja necessário, mas insisto na máxima de honrar a criança como forma de cuidar para que o tratamento não seja sequer necessário e para que possamos combater, pela vida, o fenômeno da medicalização da infância.
3 – Você poderia me fornecer dados numéricos sobre compra e dispensação do metilfenidato no Brasil? O número é considerado alto?
Resposta: Sim, o crescimento vertiginoso nos números de compra e dispensação do metilfenidato são vistos com muita preocupação por nós, do Fórum Sobre Medicalização da Educação e da Sociedade. Fizemos, inclusive, pesquisas de mapeamento sobre compra e dispensação do medicamento em municípios do Estado de São Paulo. Temos acompanhado o espantoso aumento do acesso ao remédio e até por isso consideramos que a supracitada Portaria 986/14, da Secretaria Municipal de Saúde da Prefeitura de São Paulo, represente um avanço significativo em termos de saúde pública. Mas você me pede dados numéricos; então vamos lá: tenho conhecimento dos levantamentos realizados em 285 municípios do Estado de São Paulo (o que nos fornece uma amostra do quadro em termos nacionais, já que a parte fala do todo e os dados da ANVISA corroboram minha hipótese): de 43.380 comprimidos dispensados chegamos a 1.263.166 comprimidos em 2011; de 54.510 comprimidos comprados em 2005, passamos para 1.589.824 comprimidos. O gráfico no qual me baseio para citar essas informações foi publicado no site do Fórum (https://medicalizacao.org.br/mapeamento-do-uso-do-medicamento-cloridrato-de-metilfenidato/) e traz duas curvas ascendentes que considero muito preocupantes.
4 – De que forma esses medicamentos atuam no sistema nervoso das crianças? Elas ficam dependentes deles?
Resposta: O metilfenidato é um estimulante do Sistema Nervoso Central (SNC). Da família das anfetaminas, o fármaco aumenta a liberação e inibe a recaptação de dopamina (neurotransmissor ligado à concentração e às funções executivas) e noradrenalina (neurotransmissor da ansiedade, do alerta) no cérebro. Atua no sentido de manter a criança ou o jovem "concentrado e capaz de controlar seus impulsos". Sim, existe o risco de dependência e de elevar as chances de drogadição na adolescência.
5 – A maioria dos pais entende que o medicamento faz bem para o filho? Como convencê-los de que esses medicamentos não são os protagonistas do tratamento do TDAH?
Resposta: O que raramente se diz e que parte relevante da literatura vem apontando de forma incisiva é que os divulgados efeitos terapêuticos do metilfenidato são, na realidade, sinais de toxicidade da droga. Os pais precisam saber disso e precisam saber que o que se produz com esse remédio é a contenção química de crianças, o silenciamento de conflitos latentes que, por não conseguirem se expressar (e não estamos conseguindo facilitar isso para as crianças), aparecem como sintomas de intensa atividade e desatenção. Há que se voltar a destacar a produção social de hiperatividade e desatenção. Penso que a sociedade está praticando uma dupla violência com as crianças: primeiro, ao negar-lhes o direito a uma infância livre e saudável; depois, medicalizando aquilo que, na criança, pede escuta e atenção. Isso é gravíssimo. Agora veja… os medicamentos SÃO os protagonistas do tratamento do TDAH. O que proponho às famílias, educadores e colegas é que deixemos de pensar o TDAH e passemos a pensar a criança e a infância danificada que temos hoje. Deixo como provocação a ideia de um professor do meu período de graduação: "passamos do tempo em que se criavam remédios para doenças para um tempo em que se criam doenças para remédios".
Ricardo Taveiros Brasil é psicólogo, mestrando em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pelo Instituto de Psicologia da USP, membro do Grupo Interinstitucional Queixa Escolar e do Fórum Sobre Medicalização da Educação e da Sociedade.
Por Mariella
Oi Ricardo,
gostei das suas explicações.
A medicalização da infância está rodeada de interesses da indústria farmacêutica e da própria sociedade, que quer negar à criança o direito de ela ser apenas criança.
Recentemente li que pais de bebês gêmeos levaram um kit de sobrevivência para "amenizar" os possíveis transtornos ocasionados pelo choro dos bebês para todos os passageiros de um vôo – e a imprensa, e os passageiros consideraram isso o máximo, uma idéia genial sob seu ponto de vista. A notícia está neste link https://revistacrescer.globo.com/Revista/Crescer/0,,EMI317944-17729,00.html
Assusta que até os bebês e suas reações naturais já não possam ser tolerados, onde será que nossa saúde mental vai parar?