Apoiadora da PNH em Joinville ganha Prêmio Fritz Perls

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CINS
OFICINA DE CIDADANIA E INCLUSÃO SOCIAL

A clínica gestáltica dos ajustamentos ético-políticos como proposta de intervenção na Atenção Primária no Sistema Único de Saúde – SUS

Ângela Maria Silva Hoepfner

I – Introdução

O que se propõe é uma forma de produção de saúde na Clínica Ampliada, de acordo com a Política Nacional de Humanização – PNH no Sistema Único de Saúde – SUS. O referencial teórico que norteia a proposta de intervenção clínica neste trabalho é a Gestalt Terapia, com a clínica da aflição e os ajustamentos ético-políticos, a partir de estudos realizados no Instituto Müller-Granzotto – Florianópolis-SC. O projeto teve início em julho de 2006, aprovado em outubro do mesmo ano como projeto de extensão do curso de Psicologia de uma universidade da região, com a participação de diversos profissionais como psicólogo, farmacêutico, médico psiquiatra e terapeuta ocupacional, assim como alunos dos cursos de graduação de Psicologia, Medicina e Farmácia. Atualmente é coordenado por uma psicóloga com a participação de uma terapeuta ocupacional da unidade de saúde. Desde janeiro de 2008 tem se mantido através da comercialização de seus produtos.

O artigo 4º da Lei Federal 8.080 define o Sistema Único de Saúde – SUS como o conjunto de ações e serviços de saúde prestados à população por órgãos e instituições públicas das três esferas de governo, baseado na promoção, proteção e recuperação da saúde. O Ministério da Saúde, desde 2001, através da Política Nacional de Humanização da Gestão e da Atenção – PNH, tem tentado garantir e efetivar o SUS através da mudança dos modos de fazer, dos modelos de atenção e gestão da saúde com a valorização dos diferentes sujeitos implicados no processo de produção de saúde. Com foco na contramão das práticas tradicionais de redução dos sujeitos com recortes diagnósticos ou burocráticos, a proposta de Clínica Ampliada e Projeto Terapêutico Singular surgem como um instrumento para que os trabalhadores e gestores de saúde possam enxergar e atuar na clínica, para além dos pedaços fragmentados, ao mesmo tempo reconhecendo e utilizando seu potencial de saberes relacionando-se com os sujeitos enquanto protagonistas do seu projeto terapêutico.

Na obra Gestalt Terapia (1997 p.235) ao contextualizar os diversos distúrbios do self, PERLS, HEFFERLINE e GOODMANN descrevem a perda das funções do Ego na neurose, dizendo que
a neurose encontra-se a meio caminho entre o distúrbio do self espontâneo, que é a aflição, e o distúrbio da função de id, que é a psicose […] aquele que se dá espontaneamente poderá não realizar o contato final; a figura está dilacerada em meio à frustração, raiva, exaustão. Nesse caso ele está aflito em lugar de estar feliz. A inanição é o dano sofrido por seu corpo. Sua disposição é amarga e ele se volta contra o mundo; mas não se volta ainda contra si próprio nem tem muita percepção de si próprio, a não ser de que está sofrendo, até que fique desesperado. A terapia para ele deve ser aprender mais técnicas práticas, e deve haver também uma mudança nas relações sociais de modo que seus esforços frutifiquem, e, enquanto isso, um pouco de reflexão. Isto é o cultivo da Personalidade.

Esta passagem mostra como os autores pensam o comprometimento da função personalidade, denominados ajustamentos ético-políticos pelo casal MÜLLER-GRANZOTTO. Segundo eles (2007, p. 244 )
Os fundadores da GT acreditam que temos aquelas formas de ajustamentos de nossa historicidade em que uma limitação do meio – que assim se furta à livre ação do self – impede que este possa encontrar dados, na mediação dos quais consiga oferecer, ao fundo de excitamentos históricos, um horizonte de futuro que os faça valer como realidade objetiva, valor ou identidade social. Apesar de dispor de um fundo de excitamentos (função id), a falta de dados impede o sistema self de agir, de desempenhar a função de ego. Conseqüentemente, o sistema não pode crescer, não pode agregar ao seu fundo histórico um mundo humano, social – que é o mundo das formas objetivas com as quais o self pode se identificar (função personalidade). A função personalidade portanto, não se desenvolve e o processo de self sofre em decorrência de não poder assumir uma identidade objetiva. Perls, Hefferline e Goodmann chamam essa patologia de “misery” (que propomos traduzir como sofrimento ético-político).

 

Afirmam MG (2009) que “o sentido ético-político da função personalidade para a Gestalt-terapia compreende a experiência de contato que envolve:

1- A preocupação atual (que inclui nossas necessidades fisiológicas e as demandas sociais formuladas na linguagem);
2- Os excitamentos (que retornam de um fundo de hábitos assimilados);
3- As soluções vindouras (que mais não são que nossos desejos formulados a partir da expectativa de nossos semelhantes).

É na forma da ação criadora que esses três elementos são enovelados como um só fenômeno de campo: “Contato é ‘achar e fazer’ a solução vindoura. A preocupação é sentida por um problema atual, e o excitamento cresce em direção à solução vindoura, mas ainda desconhecida” (PHG, 1951, p. 48). As expectativas dos semelhantes, as demandas sociais, as nossas necessidades atuais são a base daquilo que constitui a função personalidade”.

 

Figura 1 – “Dinâmica Temporal do Self” MG (2007, p. 233 )

“Representação sistemática da dinâmica específica do fluxo que caracteriza o sistema self:
• O pré-contato corresponde à espontaneidade de nossa vivência histórica;
• O contatando é o excitamento espontâneo que atravessa as possibilidades de contato em proveito da configuração de uma unidade presuntiva de mim mesmo;
• O contato final é a efetivação dessa unidade. É a própria formação de uma Gestalt;
• O pós-contato é a retenção intencional das experiências de contato. Ele corresponde à destruição e assimilação do já vivido”. (MG, 2007, p. 233)

II – Objetivos

• Produzir saúde e valorizar os diferentes sujeitos implicados neste processo;
• Produzir “desvios” das práticas tradicionais de redução dos sujeitos com recortes diagnósticos ou burocráticos, enxergando e atuando na clínica, para além dos pedaços fragmentados;
• Reconhecer e utilizar o potencial de saberes relacionados com os sujeitos enquanto protagonistas do seu projeto terapêutico;
• Assegurar aos sujeitos uma escuta ao sofrimento;
• Co-participar do processo dos sujeitos na reconstrução da autonomia e do auto-reconhecimento da função de ego, a partir de seus pedidos de socorro para que possam voltar a fazer ajustamentos criadores;
• Acompanhar o processo de tomada de decisão de cada sujeito frente aos conflitos e dificuldades que esteja vivendo;
• Garantir que os sujeitos vivam e se apropriem das relações sociais (função personalidade), contribuindo para a sua inclusão;
• Atuar na elaboração e gestão de políticas públicas de saúde como co-participantes dos processos de construção social das múltiplas personalidades assumidas pelos sujeitos nas diversas identidades objetivadas;

III – Metodologia

• Rodas de conversas mediadas por uma atividade como facilitadora do processo de reconstrução da autonomia e do auto-reconhecimento da função de ego;
• A formação do grupo se dá a partir do encaminhamento pelos diversos profissionais da rede de saúde (médicos clínicos, psiquiatras, enfermeiros, terapeutas ocupacionais, psicólogos), sendo que o grupo é aberto para quem quiser participar a qualquer momento;
• Encontros de uma vez por semana, com duas horas e meia de duração;
• As atividades são escolhidas pelo grupo através de votação;
• Atividades de lazer: passeios, lanches, festas comemorativas;
• Em atividades de artesanato os instrutores são, ou os próprios membros do grupo, que a partir de suas habilidades pessoais, se oferecem para tal, ou pessoas da comunidade que se propõem de forma voluntária e são escolhidas através de votação pelo grupo;
• Os objetos confeccionados são comercializados em bazares e em eventos da comunidade;
• A verba proveniente da comercialização dos produtos é destinada para a compra de novos materiais para as oficinas e para atividades de lazer.

IV – Resultados

• Foi possível constatar a aderência à proposta da oficina pela freqüência de 96%, durante os três anos de atividade;
• Depoimentos colhidos em dezembro de 2007 (A) e em maio de 2009 (B), a partir da pergunta: ”O que tem representado a Oficina “CINS” em sua vida”?

• Respostas A
“A segunda-feira parece que é melhor… a gente distrai a mente…conversa, ouve outras pessoas…ficar em casa é chato”.

“Tudo depende do meu estado de ânimo…aqui eu me sinto uma pessoa normal..quando estou lá fora é chuva…é temporal…quando estou aqui é dia de sol”.

“É bom a gente vir aqui…fazer este trabalho…se não tem força de vontade não vale a pena vir aqui…está sendo bom demais porque está me ajudando bastante…antes eu estava com depressão e agora está tudo bem”.

“Pra mim está sendo muito bom porque eu era uma pessoa bem tímida e isto me ajudou bastante…a gente está se entrosando…a minha família já sentiu a diferença…já converso mais agora”.

“Eu sempre trabalhei na minha vida e agora estou “encostada”…pra mim ficava difícil…agora estou fazendo alguma coisa…é bom vir aqui…encontrar outras pessoas…fazer amizades…além de ter mais espaço não faço tantos erros na minha vida…eu me sinto bem…eu sinto que estou fazendo alguma coisa…eu sinto que estou fazendo um trabalho”.

• Respostas B
“Para mim é como um lazer”.

“É amizade”.

“É gratificante”.

“A Oficina CINS tem sido algo novo que eu não conhecia…me sinto grata…faço amizades…encontro com outras pessoas”.

“Através dela tenho aprendido muitas coisas…me sinto grata pelas pessoas do grupo e pelas pessoas responsáveis”.

“Eu adoro…arrumei muitas colegas boas”.

“É muito bom, eu gosto de vir porque é bom trabalhar entre amigos”.

“É algo que me dá coragem para enfrentar os problemas…me sinto muito mais corajosa para viver”.

“Eu amo este grupo…aqui eu me sinto útil…aqui a gente não se sente excluída”.

V – Conclusões

A partir dos depoimentos é possível constatar como a vida dos usuários tem se organizado a partir do que vivenciam entre si nos encontros. Isto permite afirmar que a atividade social compartilhada pode ser um bom recurso para a objetivação de identidades, apropriação das relações e inclusão social.

A Política Nacional de Humanização tem como proposta o estabelecimento de grupalidades e de vínculos solidários. Ela aposta no trabalho coletivo, na formação em redes, na relação existente entre a transformação das práticas e na transformação das relações estabelecidas entre sujeitos e grupos. Por sua vez, a Clínica Ampliada e o Projeto Terapêutico Singular apostam na autonomia, potência e saberes dos diferentes sujeitos para a transformação da realidade porque propõem a inclusão de todos nos processos de mudança, vendo o Sujeito como um semelhante a ser acolhido, ao mesmo tempo que é um ser capaz de se criar.

Por sua vez a Gestalt Terapia tem como ética o sentido de “morada, abrigo, refúgio”, lugar onde somos “autênticos e despidos” de defesas, onde estamos protegidos, abrigados, e podemos receber o “outro”, enquanto a clínica é entendida como a capacidade que cada sujeito tem para introduzir, a qualquer momento, um desvio no curso de sua vida que permita desencadear a criação de uma nova ordem.(Müller-Granzotto, 2007). A clínica dos sofrimentos ético-políticos tem como objetivo garantir que os sujeitos vivam e se apropriem das relações sociais (função personalidade) em suas vidas.

Desta forma, arriscamos afirmar que neste aspecto a filosofia da Gestalt Terapia parece estar em consonância com a filosofia da Política Nacional de Humanização, o que nos permite dizer que a clínica dos ajustamentos ético-políticos pode ser uma das propostas de intervenção em saúde mental no Sistema Único de Saúde.

VI – Referências

BRASIL. Ministério da Saúde. HumanizaSUS: Política Nacional de Humanização: a humanização como eixo norteador das práticas de atenção e gestão em todas as instâncias do SUS / Ministério da Saúde, Secretaria-Executiva, Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. – Brasília: Ministério da Saúde, 2004.

MULLER-GRANZOTTO, Marcos José e Rosane Lorena. Fenomenologia e Gestalt Terapia. São Paulo: Editora Summus, 2007.

__________. A Clínica do Sofrimento Ético-político. Texto apresentado aos alunos, durante as aulas do Curso de Especialização em Gestalt Terapia do Instituto Muller-Granzotto. Florianópolis, 2008.

__________. A Clínica Gestáltica da Aflição e os Ajustamentos Ético-Políticos. Trabalho apresentado no GT CATARINA. (Não publicado). Florianópolis, 2009.

PERLS, Frederick. HEFFERLINE, Ralph. GOODMAN, Paul. (1951). Gestalt Therapy. Excitement and Growth in the Human Personality. New York: Bantam Book, 1977.

__________. (1951). Gestalt-terapia. São Paulo: Editora Summus, 1997.