A Legitimidade da Identidade de Gênero: uma perspectiva liberal

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[O artigo a seguir faz parte da coluna “Os dois lados da moeda”, onde duas lideranças do Estudantes Pela Liberdade com visões diferentes escrevem sobre o mesmo tema, abordando perspectivas diferentes e expandindo o debate dentro o Movimento Liberal]
 
O Artigo a seguir foi escrito por Vitor Barros, Coordenador Local do Estudantes Pela Liberdade em São Paulo.
 
Antes de tudo é necessário fazer uma breve distinção entre algumas categorias – que frequentemente são mal compreendidas – para o melhor desenvolvimento do tema: sexo biológico e identidade de gênero.
 
O sexo biológico é o sexo com o qual o indivíduo nasceu e é aqui que se insere a classificação clássica entre homem e mulher. Alguns argumentam que, por causa do fator cromossômico (XX e XY), determinante no sexo biológico, ele deveria determinar a identidade de gênero. Não obstante, há estudos científicos – dentre eles a célebre obra do endocrinologista francês Alfred Jost – que comprovam que alguns casos de formação fetal uterina fazem com que o feto se torne fenoticamentetransgênero, apesar de sua genética, graças à influência de hormônios. Por exemplo, Jost provou empiricamente que caso um feto XY – e, portanto, homem – não receba ou não sofra os efeitos do hormônio AMH e da testosterona testicular, ele muito provavelmente se tornará fenoticamente feminino.
 
Já a identidade de gênero indica o gênero ao qual o indivíduo acredita pertencer. Por exemplo, uma pessoa que ‘nasceu’ homem, mas se identifica com o gênero oposto é, assim, uma mulher transgênero; mas caso essa mesma pessoa se identificasse com o gênero na qual ‘nasceu’, ela seria um homem cisgênero. Essa classificação vem do latim, no qual cis  significa ‘aquém de’, do ‘mesmo lado que’, ou seja, se refere ao indivíduo que se identifica com o gênero com o qual nasceu, já trans significa ‘além de’, ou seja, se aplica a um indivíduo que se identifica com um gênero diferente do seu de nascimento, ou seja, além do qual nasceu. Como já supracitado, é muito provável que esse fenômeno tenha raízes hormonais e, portanto, biológicas – mas não é descartável a influência menor do fator psicológico [1].
 
Feita essas distinções, é importante ressaltar mais uma vez que sexo biológico e identidade de gênero são completamente distintos. O primeiro pertence ao campo da genética e o segundo ao campo endocrinológico e psíquico. Sendo assim, se faz necessário um olhar mais atento à causa trans*, posto que nós, liberais, sob a égide do individualismo metodológico, devemos respeitar as particularidades biológicas de cada indivíduo, sem tolher sua liberdade por fatores que não ferem a ninguém e que estão, muito provavelmente, fora de seu controle.
 
Entretanto, enquanto liberais humanistas, mesmo que o caso trans* fosse meramente psicológico, nós deveríamos respeitá-los, posto que a grande maioria de nossas expressões e inter-relações com nosso próprio corpo são construções sociais e, como tal, moldáveis. O próprio corpo, por mais que seja um dado da natureza, adquire significações totalmente diferentes em cada contexto social do espaço/tempo, o que ilustra como o homem – através da cultura – é quem dá significado a si próprio, ao próprio corpo e ao mundo que o circunda [2]. Ademais, por vezes, essa cultura edificada pelos homens ao longo de séculos constrói mecanismos que acabam por cercear a liberdade individual, ao invés de aumenta-la, regulando, não aceitando e punindo indivíduos por crimes sem vítima, cujo único delito de fato teria sido exercer a própria individualidade e ousar ser diferente. O objetivo desses mecanismos seria manter a homogeneidade de uma determinada sociedade, tipificando, assim, os dissidentes como párias sociais, traidores.
 
Às sociedades com essa estrutura – que geralmente se encontram em comunidades “primitivas” –, o sociólogo francês Émile Durkheim aplicou o conceito de solidariedade mecânica, que se oporia à solidariedade orgânica das sociedades modernas, onde a tolerância ao diferente seria muito maior. Entretanto, por mais que a sociedade atual esteja muito mais próxima da solidariedade orgânica que da mecânica – as conquistas da modernidade são inegáveis –, ainda há resquícios dessa última entre nós. A não aceitação do diferente, das condutas e posturas que, apesar de não ferirem ninguém, são tidas como heréticas, é um indício dessas fortes marcas que ainda perduram.
 
Muitos – tantos que exemplificar faz-se desnecessário – ainda se incomodam com o que acontece nos quartos dos indivíduos ou com o que eles fazem com o próprio corpo. A liberdade, dizem eles, não pode ser confundida com libertinagem, ou seja, não pode ultrapassar determinados limites – que são obviamente estabelecidos por quem profere tal fala. Agora, eu vos indago: se uma ação ou conduta específica de um indivíduo não agride ninguém, por que recriminá-la? Todos são livres, desde que não firam outros, para fazer o que bem entendem – essa é a base moral dos libertários. Punir alguém por gozar de sua liberdade pacificamente, ou seja, por agir moralmente faz algum sentido?
 
Qual o problema com as pessoas transgêneras? Suas ações não afetam ninguém além delas mesmas, e o que elas fazem com os próprios corpos não diz respeito a ninguém, posto que a propriedade sobre si mesmo é a primeira e mais elementar de todas. Pertence ao indivíduo – e somente a ele – o império sobre o próprio corpo. “Sobre si mesmo, sobre seu próprio corpo e mente, o indivíduo é soberano” bem disse, há 150 anos, o liberal inglês J. S. Mill. Seria de uma tirania indizível querer mediar de fato, ou seja, coercitivamente o arbítrio e a ação do indivíduo sobre si mesmo.
 
É bem verdade, alguns diriam, que há a liberdade de se discriminar, mas, responderia, por que fazê-lo com um indivíduo que nada mais faz do que buscar a própria felicidade? A beleza da liberdade é que ela possibilita a todos atingir a prosperidade e, pois, a felicidade, ao entender que os indivíduos são muito diversos, assim como suas demandas – econômicas ou não – e, assim, possibilitá-los a escolher e articular meios para atingir os fins que acreditam ser satisfatórios. Se a liberdade emancipa, por que punir alguém por usufruir dessa emancipação? Sem falar que seria de fato contraditório para aqueles que dizem ser adeptos do individualismo julgar outros indivíduos sem conhecê-los de fato, apenas por esses a quem julgam pertencerem a um coletivo de pessoas – e, no caso das pessoas trans*, um coletivo que elas não escolheram pertencer. Lembremo-nos que o coletivismo é o pai de todos os preconceitos.
 
Ainda, por ser relacionado a nosso tema, trataremos também de um polêmico debate que tem vindo à tona recentemente: a questão do ensino sobre a identidade de gênero nas escolas [3].  Como liberal, tendo a ser a favor da desestatização do ensino, entregando a sua gestão à iniciativa privada que atenderia de forma mais eficaz a todos. Entretanto, essa não é a realidade e, pela atual conjuntura política, não será por algum tempo, de modo que tentar tornar o atual modelo o melhor possível enquanto não conseguimos a desestatização, se faz necessário para que as crianças obtenham a melhor educação possível.
 
Dentro da atual escola a carga de conteúdo dispersos e, por vezes, inúteis é enorme e há pouca educação para a vida. Pouquíssimas instituições oferecem instrumentos de profissionalização, o que ajuda a compreender o porquê da baixa produtividade do jovem que busca o primeiro emprego – e do quadro nacional como um todo.
 
Entretanto, não só de profissionalização é feita a educação, é necessário que haja também uma formação humanística que possibilite com que a criança se autonomize e tenha capacidade de ler criticamente e pensar por si só. Ainda, em uma sociedade livre, as crianças devem aprender a respeitar as escolhas e particularidades individuais, em suma, devem aprender a tolerar o próximo. Não há justificativa cognoscível – além dos argumentos teológicos inaceitáveis de alguns – para que as crianças não entrem em contato as múltiplas cores da pluralidade humana, ou seja, para que não aprendam que os indivíduos são diferentes e, pois, possuem particularidades muito diversas, as quais devem ser respeitadas em nome da boa convivência.
 
No verbete sobre Tolerância do Dicionário Filosófico, Voltaire diz que a tolerância “é a consequência da humanidade. Nós somos todos formados de fragilidade e de erros; perdoemo-nos reciprocamente, essa é a primeira lei da natureza” [4]. Ou seja, a tolerância é a base de toda comunidade humana que tencione respeitar as particularidades individuais e, pois, respeitar a legitimidade e o espaço do próprio indivíduo. Sem ela é impossível que a liberdade como a concebemos seja efetivamente mantida. Respeitar pessoas transgêneras e as suas liberdades, pois, é mais do que um bom ethos – é um imperativo moral a todos aqueles que visam conservar a liberdade. E não há nada de errado ao ensinar às crianças a ter amor pela liberdade e, também, a saber como a manter.
 
[1]Para uma introdução aos trabalhos de Alfred Jost, ver Josso (2008); para uma melhor exemplificação da influência predominante do fator hormonal, ver Asscheman e Gooren (1992); e para um comparativo entre as influências psíquicas e hormonais em pessoas trans* ver o grande estudo Meyer, W.J., Webb, A., Stuart, C.A., Finkeistein, J.W., Lawrence, B., Walker, PA. (1986).
 
[2]Para um breve estudo antropológico da influência social sobre o corpo ver: MAUSS, M. As técnicas do corpo. In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003, p.399-422; e para uma maior exemplificação das mudanças no espaço/tempo na inter-relação entre homem e corpo ver: COURTINE, Jean-Jacques (Dir.). História do corpo: mutações do olhar: o século XX. 2.ed, Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.
 
[3]É importante frisar aqui que ensinar algo não implica de forma alguma fazer apologia ao objeto de estudo.
 
[4] “Qu’est-ce que latolérance? c’estl’apanage de l’humanité. Noussommestouspétris de faiblesses et d’erreurs; pardonnons-nousréciproquement nos sottises, c’estla première loi de lanature […]”. Tradução nossa.