Não pensemos que nos tentam destruir. Falemos antes da hipótese de que nos tentam produzir. Produzir-nos enquanto sujeito político, enquanto “anarquistas”, enquanto “Black Bloc”, enquanto “antissistema”, de modo a extrair-nos da população genérica, fixando-nos a uma identidade política. in Aos Nossos Amigos, Comitê Invisível, 2014
Há um bom tempo vivemos uma tensão em torno do termo medicalização. Como ele aparece em diversos escritos, a polifonia em suas definições é mais do que bem-vinda, mas mesmo assim merece sempre mais vozes e discursos para serem adicionadas às suas reflexões.
Como impressões de dois livros que li numa sentada, em um dia em que se quer negar a conexão com o mundo, sinto-me mais animado a prosseguir com esse tipo de empreitada. [Claro que aqui não vou fazer resumo].
A motivação são os anos de disputas e tencionamentos que produzimos enquanto parte de um movimento-fluxo: o Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade.
Fica evidente, então, meu interesse pelo livro “Medicalização em Psiquiatria”, escrito por Fernando Freitas e Paulo Amarante. O livro faz parte da série Temas em Saúde e apresenta discussões que ocorrem na academia para um público mais amplo. É desse tipo de bom encontro que provavelmente gestores, pesquisadores e ativistas em saúde conseguirão ter contato com as discussões sobre a medicalização. E se a medicalização na psiquiatria tem uma problemática, elas são as práticas terapêuticas farmacocêntricas, ou seja, as estratégias que colocam no centro do tratamento o remédio como mediador entre o paciente/cliente/’problemático’ com o mundo social.
Afinal, se é de um fenômeno social, e não somente biológico, que estamos falando, é sempre bom lembrar que a sociedade como um todo é refém e polícia das práticas de medicalização: você não se trata? Ouvimos recorrentemente.
O discurso da medicalização tem um casamento duradouro com nossas práticas de prescrições, tome remédios, faça terapia, faça sexo, tome vitamina, coma alimentos integrais. O mundo atual, em todas as esferas, parece estar cooptado por práticas que querem a todo o momento otimizar o corpo dentro de um padrão.
O livro, apesar de pequeno, tem uma aposta muito importante e que precisa ser levada aos fóruns de discussão de saúde mental: o que queremos dizer quando falamos em esquizofrenia?
Paulo Amarante e Fernando Freitas nos convidam a essa reflexão. É fácil imaginarmos a inserção de pessoas passando por problemas de ordem mental leve na rede de atenção psicossocial. Mas a questão sempre fica em como inserir os casos considerados mais graves. É como que chegássemos a um ponto onde não pudéssemos mais agir e pensar outramente, há casos onde o rótulo e a medicação devem existir. Ou ainda, serviços especializados para determinados públicos.
É essa peculiaridade do português que parece resistir em nossas análises, apesar da medicalização não estar relacionada somente aos medicamentos, é sempre ele que aparece como o grande operador contemporâneo desse fenômeno. Nos esquecemos de tantas outra capturas que parecem querer nos controlar, numa refinada trama biopolítica. Há outras formas de expressar esse fenômeno, e que continuam a disputar sentidos e discursos: patologização, farmaceuticalização, estigmatização.
Façamos a crítica interna, no Brasil, muito devido ao impacto da Medicina Social e do processo de construção do Sistema Único de Saúde como prática cidadã na redemocratização, partimos do pressuposto de um corpo biopsicossoail. Ou seja, sempre formado por uma biologia, conformado por uma cultura-sociedade e detentor de uma subjetividade.
É uma tensão que pendula entre esses fatores: social, biológico e subjetivo.
Talvez seja necessário extravazar essa discussão, desestabelecer certezas.
Foi por dica da Prof. Maria Helena de Souza Patto que li “Sociedade do Cansaço” de Byung-Chul Han. Patto é conhecida por ter escrito A Produção do Fracasso Escolar, obra seminal para compreender como práticas e tecnologias ‘leves’ de estigmatização e sujeição transformam seres humanos em seres de segunda classe.
Na obra de Han, o autor nos alerta para um pressuposto caro a todos aqueles que operam na Saúde Coletiva, o modo como percebemos e interpretamos o mundo é permeado pelo discurso imunológico. Imaginamos que há algo estranho em nosso mundo e que precisamos aniquilá-los, ou ainda, mesmo que não seja preciso a derrota do órgão invasor, ainda se faz necessário a demarcação da sua diferença, criar formas de identificá-los e controlá-los.
Para ele, vivemos em uma fase neural, e não por um acaso ele elenca ‘doenças neuronais’ como o TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade), Síndrome do Burnout, entre outros, para se perguntar os pressupostos do ser humano e o projeto de sociedade dos dias de hoje.
Seguindo o pensamento, é preciso, talvez, ir além da afirmação de que os transtornos e formas consideradas patológicas sejam outras formas de vida. Han nos chama atenção do contrário, seguindo diversos autores, ele nos lembra que o projeto da globalização não foi o da homogeneização dos padrões e das estéticas, muito pelo contrário, foi a ascensão da pluralidade e das diferenças. O direito à diferença, para ele, mostra a passagem da sociedade disciplinar para a sociedade de desempenho.
Importante aliado para o pensamento. As premissas da sociedade do desempenho, que vivemos, veem sendo criticadas por todos, mesmo quando não sabemos como nos livrarmos delas. Afinal, vivendo dentro de políticas neoliberais calcadas no desempenho, estamos reproduzindo essa premissa por todos os lugares. Quanto você fez, quanto você publico, quanto você curtiu. Não somos mais os indivíduos da obediência, mas os sujeitos da produção e do desempenho. Essa é a produção positiva dessa sociedade, somos todos seres positivos dotados de poder.
Yes, we can. Dizia a campanha eleitoral de Barack Obama, coroando a sociedade do desempenho.
“A sociedade disciplinar ainda está dominada pelo não. Sua negatividade gera loucos e delinquentes. A sociedade do desempenho, ao contrário, produz depressivos e fracassados”. (:25)
Não estou aqui negando o poder do desejo como elemento transformador, mas é importante lembrar que o desejo em si é modulado por uma época, e na sociedade do desempenho ele naturaliza, como a priori, que a subjetividade humana deseja poder e fazer.
Talvez seja essa uma pista importante para analisarmos a medicalização, porque ele pondera algo que diversas pessoas tem-nos chamado a atenção. Não se culpa todos os excessos ou ausências, mas somente certos excessos e certas ausências. Para Han essa epidemia de diagnósticos de depressão e de TDAH apenas confirmam um padrão, o do desempenho. São quase como que sintomas de uma sociedade que se baliza pelo desempenho dos seus pares, não podem ser demasiados excitados, como os portadores de TDAH, e nem demasiados de-excitados, como os deprimidos.
“O cansaço da sociedade do desempenho é um cansaço solitário, que atua individualizando e isolando”nos lembra Han.
Como coda, fico refletindo sobre como ainda carregamos em nós, ao falarmos de medicalização um imaginário romantizado sobre como seria se não vivêssemos nesse mundo, e muitas das vezes nos apoiamos em pressupostos biológicos para imaginar esses mundos, como nas teorias do contato com a natureza. É importante sempre estarmos alertas quando dizemos que algo é da ordem social. Em épocas onde estamos re-inventando e re-descobrindo práticas de organização, luta e resistência, é importante sempre desestabilizar o sentido do social, do biológico e de nossas certezas teóricas para poder pensar outramente outros mundos possíveis.
Toda descrição, traz uma prescrição.
Por Maria Luiza Carrilho Sardenberg
Rui querido!
Que coisa boa te ver novamente por aqui. Hoje ouvindo pela milésima vez a Paul Beatriz Preciado, lembrei de você. Por ouvi-la falar que no contemporâneo, o aparato de verificação de verdades sobre tudo virou mercantil e midiático. Sociedade disciplinar é colírio, pois ainda permitia alguma resistência. Agora é produção de subjetividade conforme o projeto neo-liberal necessita e ponto. Salve-se quem puder!
beijo amigo prá você!