APONTAMENTOS SOBRE A LEI 12.935/2019 : um convite à troca e diálogo

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Com a promulgação da Lei 13.935/2019 o papel da psicologia e da assistência social na Educação Básica tornou-se obrigatória.

E esse é um debate que sempre traz muitas nuances e discussões. Qual o papel desse profissional? Qual o papel da intersetorialidade?

Ao longo de 2020, o Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade passou a debater a Lei 13.935/2019, que dispõe sobre a prestação de serviços de psicologia e de serviço social nas redes públicas de educação básica.

Após diversos debates e diálogos coletivos, foi produzido o documento APONTAMENTOS SOBRE A LEI 12.935/2019.

Central ao documento, colado ao fim e disponível em

http://medicalizacao.org.br/apontamentos-sobre-a-lei-13-935-2019/,

é apontar os riscos e potências dessa legislação diante do cenário de sucateamento da educação desde a década de 1990:

Esse cenário parece propício à instalação de olhares e práticas medicalizantes, muitas vezes instrumentalizados por “teorias” dos déficits cognitivos, perceptuais e socioemocionais que não passam de ideologias repletas de olhares preconceituosos, premissas controversas (sem consenso científico) e apagamento das dimensões social, política e institucional envolvidas nos processos de sofrimento das pessoas. A ela se soma a cultura da avaliação e desempenho que aposta na falácia da lógica meritocrática, carregando todos os fetiches das padronizações – das “capacidades”, “habilidades” e “competências” – que agora, mais do que antes, passaram a incluir as chamadas “competências socioemocionais”.

Fica o convite ao debate e reflexão em todos os serviços públicos e privados de saúde e educação. Uma vez que uma vez estigamtizados e rotulados, a tarefa do aprender torna-se um problema de saúde, que quase sempre medicaliza e despontecializa vivências e corpos.

 

APONTAMENTOS SOBRE A LEI 13.935/2019

O presente documento traz apontamentos (des)medicalizantes sobre a Lei 13.935/2019 que “Dispõe sobre a prestação de serviços de psicologia e de serviço social nas redes públicas de educação básica.”, a qual passou a vigorar a partir de 12 de dezembro de  2019.
O Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, enquanto movimento social diverso e independente, tem um caráter político e de atuação permanente. Pautado nos princípios dos Direitos Sociais e Humanos, tem por objetivos:

a. ampliar a democratização do debate sobre a medicalização da educação e da sociedade por meio do estabelecimento de interlocução com a sociedade civil e com a academia; socializar o significado da medicalização e suas consequências bem como ampliar a compreensão sobre a diversidade e historicidade dos processos de  aprendizagem, ensino e desenvolvimento humano;
b. Construir estratégias que subvertam a lógica medicalizante por meio da ampliação da produção teórica crítica; intervindo na formulação de políticas públicas, acolhimentos das famílias e apoio às ações intersetoriais que enfrentem os processos de medicalização da vida.

A criação do texto da lei se deu a partir de quase duas décadas de mobilização de entidades profissionais da Psicologia e do Serviço Social, com a realização de várias audiências públicas. Sua aprovação é fruto da luta dessas várias entidades, inclusive para derrubar o veto do Presidente da República ao projeto de lei, que está em fase de Regulamentação nos Estados e Municípios.
O Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade entendeu ser este um tema não consensual e, justamente por isso, pauta de debate e reflexão crítica. Desta maneira, foram realizadas reuniões regionais e nacionais, nas quais foram apontados possíveis riscos medicalizantes na sua implantação concreta, bem como indicados princípios e diretrizes para ações propositivas no âmbito da psicologia e do serviço social.
Entende-se por medicalização uma racionalidade determinista, reducionista e naturalizada de sociedade, a qual elege um padrão supostamente normal de existência e desconsidera a complexidade da vida humana. É um fenômeno de raízes sociais, históricas, políticas e econômicas que concebe como individuais questões que foram produzidas no terreno do coletivo, camuflando as desigualdades sociais tornando-se “terreno fértil para os fenômenos da patologização, da psiquiatrização, da psicologização e da criminalização das diferenças e da pobreza”, podendo levar à culpabilização de indivíduos por problemas estruturais de cunho multideterminado.
Sendo a Educação, a Psicologia e o Serviço Social não apenas campos de conhecimento e atuação profissional, mas instituições sociais, com suas contradições, continuidades e descontinuidades, é preciso reconhecer que, nesta sociedade, elas são também terrenos propícios à medicalização da vida. Estamos falando de uma forma de olhar o mundo quase automática, a partir de padrões impostos de normalidade, de infância, de família, de vulnerabilidade, performance escolar entre outros, podendo levar a condutas equivocadas, reducionistas, com ações sobre comportamentos e sintomas, não considerando as circunstâncias e o contexto produtor de queixas. No entanto, esses padrões, longe de serem “neutros”, estão pautados em estereótipos e crenças que desconsideram os atravessamentos sócio históricos da experiência humana, com destaque para os marcadores de raça, classe e gênero. (Acesse o manifesto do Fórum no link).

Entendemos que apontar os riscos medicalizantes de tal lei afina-se com os princípios e compromissos ético-políticos do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, na luta pela desmedicalização da educação. Nossa intervenção ativa nas políticas públicas medicalizantes, com destaque para as que afetam a educação, é histórica e marca a própria fundação do Fórum, diretamente ligada ao enfrentamento aguerrido do Projeto de Lei 7.081/2010, que dispunha sobre o diagnóstico e tratamento da dislexia e do TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade) na educação básica.

Nesse sentido, o Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade torna público os apontamentos sobre os riscos associados à implementação da lei e sobre os esforços de contramão para que a atuação de profissionais da Psicologia e do Serviço Social venha a acontecer em uma perspectiva desmedicalizante. Nossa intenção é possibilitar o debate sobre o tema, tanto com os profissionais diretamente envolvidos na lei, quanto com toda a comunidade escolar.

ALERTAMOS

É de notório reconhecimento o estado de precarização em que se encontra a rede pública de educação brasileira, resultado não da falta de políticas, mas justamente do direcionamento que elas têm tomado em um país brutalmente desigual, situado na periferia do capitalismo e engolfado pela necropolítica, típica do neoliberalismo. Tal precarização revela-se nos aspectos estruturais, nas condições de trabalho e nos planos de carreira e salários, implicando em constantes lutas e mobilizações da rede. Assim é preciso enfatizar, de pronto, que, uma vez inseridos, profissionais de psicologia e serviço social nesse cenário de tantos abandonos, também viverão todas essas precarizações.

Esta já é, aliás, a realidade de profissionais dessas duas áreas nos Centros de Referência da Assistência Social, nos serviços da Atenção Primária à Saúde e nos Centros de Atenção Psicossocial espalhados pelo país: contratados de forma precária (sendo cada vez mais escassos os concursos públicos), para atuarem em instalações precárias, com condições de trabalho também precárias, atendendo pessoas cuja vida é indelevelmente marcada por tantas precarizações. Tem sido comum o sentimento de impotência diante dos desafios imensos e complexos impostos pela realidade do trabalho. Tal impotência, quando despolitizada, produz desgastes, conflitos, sofrimentos e adoecimentos que, também despolitizados, são interpretados como fraqueza pessoal, apagando a estreita relação entre tais condições e esse cenário desolador. Abre-se caminho para a potencialização dos efeitos medicalizantes, inclusive das próprias profissionais, em um contexto árido de trabalho.

Esse cenário parece propício à instalação de olhares e práticas medicalizantes, muitas vezes instrumentalizados por “teorias” dos déficits cognitivos, perceptuais e socioemocionais que não passam de ideologias repletas de olhares preconceituosos, premissas controversas (sem consenso científico) e apagamento das dimensões social, política e institucional envolvidas nos processos de sofrimento das pessoas. A ela se soma a cultura da avaliação e desempenho que aposta na falácia da lógica meritocrática, carregando todos os fetiches das padronizações – das “capacidades”, “habilidades” e “competências” – que agora, mais do que antes, passaram a incluir as chamadas “competências socioemocionais”.
Por exemplo, diante da implementação da Base Nacional Comum Curricular em todas as escolas no país, documento pautado numa lógica mercadológica e que busca ajustar estudantes a essa sociedade, os profissionais de psicologia e serviço social, mesmo imbuídos de senso crítico, podem se tornar peças-chave da implementação dessa política neoliberal e medicalizante. Nessa medida poderão contribuir para dar legitimidade científica e técnico-profissional ao processo de medicalização através da inserção da retórica das competências socioemocionais, que embora não seja um conceito atual, é retomado no documento atribuindo-se a elas um caráter ilusoriamente inovador, mas que reproduzem e perpetuam antigas práticas massificantes e já criticadas no bojo da psicologia há mais de 40 anos.

A produção de diagnósticos, a partir da aplicação de instrumentos padronizados, é o perigoso convite dominante. Nesse ponto, tencionamos a concepção prática que condiciona o direito à educação a um diagnóstico psicossocial ou clínico-médico. Um diagnóstico, parecer e laudo de TDAH ou de autismo, por exemplo, podem garantir, para professoras, menor número de alunos por turma, assim como melhores condições de trabalho ou ainda a presença de uma auxiliar em sala, cooperando no árduo trabalho. Ou seja, a precariedade das condições concretas de trabalho nas escolas públicas, especialmente aquelas situadas em regiões periféricas, acaba validando uma prática compensatória medicalizante, que normaliza a troca de “um diagnóstico por um direito”, uma vez que para o aluno e sua família, o diagnóstico passa a contar como ilusão de um passaporte que dá acesso a melhores condições de estudo, como em salas
multifuncionais, ou mesmo o direito à locomoção, com o transporte gratuito, além de
“benefício” financeiro, em alguns casos. Há o risco de medicalização de estudantes e suas famílias, sobretudo quando de origem socioeconômica pobre, baseado na Teoria da Carência Cultural e suas atualizações. A lógica que sustenta esta prática, ao contrário do que possa parecer, é excludente e segregadora, porque no avesso da tentativa de resolver a situação de uma criança, nega o direito à educação de qualidade e para todos, aprisionando a experiência em padrões que negam as diversidades, tanto quanto as desigualdades.

Sobre tal aspecto, ainda alertamos para os riscos da tradução das amargas experiências sociais, vividas e testemunhadas cotidianamente pelos membros da comunidade escolar – tais como racismo, machismo, misoginia, cisheterossexismo, classismo, capacitismo, entre outros aspectos – simplificando-as, por exemplo, como bullying, termo cada vez mais comum no chão das instituições educativas brasileiras. Tomemos essas situações uma a uma, e veremos o quanto a concepção de bullying nega a historicidade social de tais práticas, despolitiza o debate e enfraquece seu enfrentamento profundo, em perspectiva temporal e interseccional.

Ao contrário, geralmente o que se produz são projetos individualizantes e liberais que ou são punitivistas, mascarando as tensões e contradições e empregando castigos a quem protagonizou os atos de discriminação, ou são de resiliência, voltados para quem é constantemente alvo de violência, o que mais uma vez nega as raízes histórico-culturais de tal condição.

APONTAMOS

Estes apontamentos são direcionados aos gestores públicos, gestores escolares, professores, profissionais da psicologia e serviço social, estudantes, familiares e demais membros da comunidade escolar interessados em reduzir os riscos de medicalização possíveis a partir da implementação da Lei 13.935/2019.
Consideramos como eixos fundamentais nessa direção as condições de trabalho e a atuação das trabalhadoras.
Quanto às condições de trabalho, inicialmente ressaltamos as formas de contratação, defendendo veementemente o concurso público e não o caminho do favor, da precarização ou da privatização dos serviços públicos, via terceirização.
Defendemos, mais ainda, que em tais concursos, seja cobrada uma formação crítica na compreensão e enfrentamento às práticas medicalizantes da educação. Por fim, defendemos que haja formação permanente, na qual os riscos medicalizantes das práticas profissionais possam ser pensados regularmente de forma rigorosa e responsável e ofertadas pela administração direta.
Do ponto de vista da atuação de tais profissionais na rede básica de ensino, sinalizamos a urgência de construção de práticas desmedicalizantes, as quais, no entanto, não servem como receituário mágico que, uma vez seguido, mitigará os riscos de medicalização, ou, mais do que isso, equacionará os problemas históricos e estruturais que caracterizam nossa educação pública. Uma lição básica sobre medicalização é que o trabalho de quem quer que seja no ambiente escolar é atravessado por limites objetivos e subjetivos, cuja superação é tarefa de enorme complexidade e fôlego, dificultada ainda mais por andar na contramão dos interesses dominantes.

Ressaltamos a importância de situar a escola como um todo no bojo da rede intersetorial, buscando estreitar e consolidar essa rede, o que passa por compreender e delimitar de forma densa e crítica o papel atribuído tanto à escola quanto aos profissionais de psicologia e serviço social inseridos na educação básica.
Em tempos de neofundamentalismo, excede em relevância reiterar, com vistas a práticas desmedicalizantes, que a atuação desses profissionais deve ser fundada na laicidade, e dar especial atenção aos atravessamentos de classe, raça, gênero, sexualidade, capacidade, território, entre outros, nas experiências de escolarização, em uma perspectiva interseccional.

Assim, torna-se fundamental a constante atenção para que os profissionais de psicologia e serviço social estabeleçam relações e diálogos com educadores, respeitando a liberdade de cátedra, e com a comunidade escolar, respeitando suas dinâmicas territoriais, na contramão de olhares e práticas fundamentadas no chamado “mito da incompetência docente” e da “família desajustada”. Ao longo das últimas duas décadas, os Fóruns, bem como entidades das áreas envolvidas na lei, têm produzido documentos e referenciais técnicos importantes que podem contribuir para uma atuação desmedicalizante (ver ao final do documento). Apontamos que os profissionais da psicologia e do serviço social têm muito a aprender com a ciência da educação. Desse modo, é importante que os professores e gestores proponham para esses profissionais estudos coletivos sobre questões relacionadas às pedagogias críticas de cunho desmedicalizantes. Entendemos que estudos como esse podem ajudar no crescimento tanto dos profissionais da educação, que por vezes tem esses referenciais subtraídos da sua formação, quanto, ao mesmo tempo, um crescimento para profissionais de psicologia e serviço social que, via de regra, não dominam o conhecimento pedagógico, essencial para a realização de qualquer trabalho na escola e na educação.
A presença de psicólogos e assistentes sociais na educação básica não garantirá, por si só, o equacionamento dos problemas que só podem ser resolvidos coletivamente pela participação ativa da comunidade escolar, em diálogo com diversos atores das escolas, pautando-se na horizontalidade das relações e com instâncias intersetoriais.
Por fim, convidamos toda comunidade escolar ao que nos enraíza e enlaça ética e politicamente: é preciso ocupar as escolas, em seus espaços de deliberação e participação na decisão de políticas educacionais! E lutar pela garantia do direito à educação pública, gratuita, laica e socialmente referenciada, combatendo toda e qualquer prática que promova ou reforce preconceitos ou processos de estigmatização e medicalização.
O Fórum como movimento social e diverso reitera o seu compromisso de
participar ativamente dessa construção.

Março de 2021. Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade 7

Documentos para a implementação desmedicalizante da lei 12.935/2019
http://www.cfess.org.br/arquivos/manualassistsociaispsicologo2020.pdf

https://site.cfp.org.br/publicacao/psicologasos-e-assistentes-sociais-na-rede-publica-%20de-educacao-basica-orientacoes-para-regulamentacao-da-lei-13-935-de-2019/

https://site.cfp.org.br/publicacao/referencias-tecnicas-para-atuacao-de-psicologasos-na-educacao-basica/

https://abrapee.wordpress.com/2020/12/22/nota-tecnica-sobre-atribuicoes-dao-psicologao-escolar-e-educacional/

https://www.crpsp.org/impresso/view/469

https://www.crpsp.org/impresso/view/468

https://www.crpsp.org/impresso/view/458

https://www.crpsp.org/impresso/view/50

https://orientacaoaqueixaescolar.ip.usp.br/

http://medicalizacao.org.br/recomendacoes

http://medicalizacao.org.br/oficios-e-legislacoes-nao-medicalizantes/

http://medicalizacao.org.br/genre/artigo/

http://medicalizacao.org.br/genre/livro/

http://medicalizacao.org.br/sugestao-de-leitura/

http://medicalizacao.org.br/raadh2015/

http://anais.medicalizacao.org.br/index.php/educacaomedicalizada

https://www.cpp.org.br/informacao/noticias/item/12667-pl-de-apoio-multidisciplinar-aos-profissionais-da-rede-municipal-de-ensino

https://www.despatologiza.com.br/referencias-teoricas-e-praticas

https://www.fonoaudiologia.org.br/comunicacao/cartilha-fonoaudiologia-na-educacao/

https://www.fonoaudiologia.org.br/comunicacao/cartilha-perguntas-frequentes-de-educadores-e-gestores-educacionais/

https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2012/07/Caderno_AF.pdf