Apoio Matricial e a lógica do “necessário” para combater o especialismo
Trouxe para cá, como post, o comentário que fiz na discussão de apoio matricial iniciada por Gustavo Tenório Cunha no seu blog na rede…
Tenho trabalhado tentando pensar a tecnologia do apoio matricial como forma de desconstrução do "especialismo" – considerando este uma racionalidade que se nutre de saberes "especializados" para construir dependência (de instituições, de sujeitos e processos) e agir em uma forma de política coorporativa/privatizante.
Poderíamos pensar que os desafios cotidianos da produção de saúde e autonomia demandam saberes e práticas novas ou recriadas que possam ampliar a capacidade de análise e intervenção no mundo. E poderia ser, por esse mesmo motivo, que esses determinados saberes se tornam necessários – pois aumentariam nossa potência de existir. Teríamos então – com uma certa inspiração espinosana – um regime ético que convoca os saberes "necessários" a serviço das forças da vida. Mas como essa ética pode nortear um arranjo de apoio matricial?
No cotidiano das práticas de saúde nos deparamos com dificuldades, tomadas por nós (gestores, trabalhadores, usuários, acadêmicos, pessoas…) como problema/desafio. Damos visibilidade e dizibilidade a esses problemas/desafios. O apoio matricial pode ser tomado como o arranjo organizacional que possibilita e autoriza que o "saber necessário" seja agenciado (acionando algo que já existe ou criando condições de criação de algo novo) pelos atores implicados para "resolver" a situação.
Tomar o apoio matricial nessa referência demonstra que o apoio matricial envolve questões mais além e aquém do que uma "fórmula" de reorganização da atenção "especializada".
Bom exemplo:
Já é bastante frequente o apoio matricial de saúde mental, no qual uma equipe de CAPS, ou de NASF, ou Regional de profissionais de saúde mental fazem apoio a serviços de Atenção Básica. Mas dificilmente se pensa que dentro dos CAPS, muitos usuários tem outros problemas de saúde que não o mental (DPOC, Hipertensão, DIabetes, etc) e estão sem acompanhamento regular ou mesmo sem acompanhamento nenhum destes problemas de saúde, porque estão em tratamento apenas nos CAPS. A lógica tradicional de pensar o sistema culpabilizaria a equipe de saúde da família do território de origem do paciente ou a equipe do CAPS que não vê além do problema de saúde mental. Sem pretender resolver de quem é a culpa… Poderiamos pensar, na lógica do apoio matricial, que a equipe do CAPS acionaria a equipe da Atenção Básica como aporte "necessário" ao processo terapêutico singular do seu usuário.
Todavia, isso força a desconstruir a visão de que o saber que vale é o "especializado" e que este está ligado sempre a uma mesma identidade de "especialista" na visão do especialismo.
Gustavo Nunes de Oliveira
8 Comentários
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Gustavo
muito legal desenvolver possibilidades de agenciamentos singulares, também através do apoio matricial. Estas contribuições "genealógicas" de Espinosa e Nietzsche também tem me ajudado a "aumentar a capacidade de análise" do sprofissionais nos grupos Balint-Paidéia. Quais afetos produzem o especialismo? Até onde são um problema, até onde são uma solução, uma escolha? Afinal porque eu continuaria sendo especialista se não mantivesse algum investimento nisto? Como ajudar as pessoas a lidar com estas forças sem eliminar as pessoas e também as forças? Mas também sem permitir que isto se deteriore numa disputa latifundiária?
Abraço
Gustavo Tenório
Gustavo Tenório Cunha
Por Ricardo Teixeira
Queridos companheiros,
Privilégio muito grande desta Rede contar com dois Gustavos absolutamente imprescindíveis e "necessários" para iluminar os difíceis caminhos da construção do SUS e, muito especialmente, da atenção básica, hoje.
Deleitei-me com a leitura da seqüência de posts e comentários publicados por vocês nas últimas semanas!
Em relação aos posts do Gustavo Tenório – "coordenação clínica (ampliada) e rede assistencial" e "apoio matricial: obstáculos e potencialidades", só posso dizer que eles me pareceram uma fantástica síntese de um debate que protagonizamos, há alguns meses na lista da RHS, sob a forma de uma (agora percebo que aparente) forte divergência. Provavelmente, uma boa dose de "comunicose" deve ter atravessado aquela nossa conversa. Destaco, por exemplo, nossa discordância, naquela ocasião, a respeito do papel coordenador da AB numa lógica de rede. Não tenho nada a discordar quando leio, agora, essa sua síntese perfeita no final do primeiro post:
"Contrariando o que esta implícito em muitos textos sobre atenção primária (STARFIELD 2002), a atividade de coordenação não é necessária somente na relação da atenção básica no sistema de saúde, mas também nos serviços de saúde complexos, como enfermarias e UTI’s em que os pacientes muitas vezes estão sob os cuidados de vários profissionais."
Em relação ao comentário-post do Gustavo Nunes ("a lógica do ‘necessário’ para combater o especialismo"), só posso manifestar minha alegria em ver a "ética" espinosana expandindo nossa compreensão e as potencialidades do apoio matricial. Com certeza, será bastante útil se aprofundarmos um pouco mais o que significa essa "ontologia do necessário", que constitui o plano de imanência da "Ética" de Spinoza, já que as concepções mais correntes (senso comum) tendem a induzir uma compreensão, às vezes, um pouco torta da lógica do "necessário"… Será um grande prazer poder tecer alguns elementos para essa compreensão, colaborativamente, com você(s), aqui nesta Rede.
A gente encara esta na seqüência do Seminário Nacional que se avizinha e deverá nos ocupar integralmente nos próximos dias…
Grande abraço e até lá!
Ricardo
Gustavo que há algum tempo me questiono sobre este tema?! Em 2004, aqui em Passo Fundo, começamos um trabalho de apoio matricial em SM nas Unidades de Saúde da Família. Esta experiência foi marcante devido aos "dois lados da moeda" que apontas: "o necessário e o especialismo". Muitas vezes foi um trabalho conjunto, que conseguiu superar barreiras… Mas as barreiras do especaialismo por vezes apareceram e te digo que hoje consigo entender melhor, pois saí do CAPS (me desencapsulei – um pouco, pois ainda me considero em processo, embora sei que sempre estamos em processo de construção, desconstrução e reconstrução) e estou amadurecendo as minhas discussões sobre a SM de outro lado, agora na APS. O apoio deve ser transversal e vontade das partes envolvidas – criar a demanda não ajuda, mas construí-la, evidenciá-la… pode transformar a prática para um cuidado integral.
Seguimos conversando!
Um abraço, Carol – UP Minuano / RS
Carol,
Vivenciar diferentes espaços institucionais, sentir o que se fala de um lugar e de outro, na própria pele… O que se vê de um lugar e de outro… Contribui para desestabilizar maniqueísmos e falsos problemas. Se a questão for quem sabe mais ou menos sobre tal assunto, nem tangenciamos os "bons problemas" que podemos "inventar" para nós mesmos quando nos encontramos com outro na clínica/gestão/vida. E esses não são nada espontâneos, por "serendipity", sem esforço, como pensam aqueles que se incomodam demasiado com o "inventar" e o desqualificam ao opô-lo a tudo que já foi inventado.
Abraço prá você!
Gustavo Nunes de Oliveira
Por Renata Rozendo
Renata,
Você fala de experimentações muito interessantes e intensas que nos remetem a alguns questionamentos importantíssimos se relacionarmos essa conversa com o "método" proposto pela PNH e também com os modos de operar de muitos dos atores que pretendem "humanizar serviços". Algumas que provoco:
– Por que, apesar de todo um acúmulo de experiências, muitos gestores, trabalhadores, usuários e consultores da humanização ainda usam os termos: "Vamos implantar o Acolhimento (o Apoio Matricial, A visita Aberta, etc…)!"
– Do que se trata "implantar"?
– Que lugar alguém tem que ocupar, necessariamente, para implantar um dispositivo da Humanização?
– Esse lugar é compatível com a proposta ético-política da PNH?
Gostei muito dos seus relatos e os aproveito este espaço para propor pensarmos coletivamente como colocar questões para a PNH.
É uma boa questão pensarmos como compatibilizar, se é que isso é possível, uma proposta metodológica libertária (metodo da PNH) com a necessidade de resultados pragmáticos de uma política de Estado?
Aberto para quem quiser participar obviamente…
Gustavo
Gustavo Nunes de Oliveira
Por Renata Rozendo
Olá Gustavo vou “tentar” responder os seus questionamentos, não sei se vou conseguir…
Você falou de um método da PNH;
… método da tríplice inclusão, o modo de caminhar no sentido da inclusão (do sujeito no que concerne a construção de autonomia e co-responsabilização; dos analisadores sociais, fenômenos que desestabilizam os modelos de atenção e gestão; do coletivo, movimentos sociais e movimentos sensíveis), que se entrelaçam em agenciamentos coletivos concretos, por meio dos dispositivos.
Vou tentar responder a partir de um questionamento feito no 2º Seminário Nacional de Humanização (participação via internet) graças ao empenho de Jacque e Pat consegui assistir alguns debates (na Ágora). Infelizmente no último dia não foi possível a transmissão.
Sobre os conceitos da Humanização.
O que é um conceito? Para que serve? Por que criar conceitos?
Segundo Deleuze,… a criação de um conceito e esta criação se faz em função de um problema. Pois, não vêem os problemas, pois eles são um pouco ditos, um pouco escondidos,… é restaurar esses problemas e assim descobrir a novidade dos conceitos.
(O próprio conceito Humanização veio à luz a partir de uma demanda social – por meio uma pesquisa evidenciou-se a necessidade de melhorar a qualidade das relações humanas no atendimento a saúde)
Voltando aos dispositivos …..
– Do que se trata implantar?
Promover mudança de práticas. O problema é de como se utilizam esses dispositivos. Eles apontam uma meta. Mas o “foco” é o modo como se constrói pra buscar a meta (inalcançável, pois não é uma obra fechada), de modo a responder as demandas de flexibilidade, integralidade e descentralização.
A Política Nacional de Humanização (PNH) nos oferece “um vasto cardápio de ofertas”; Acolhimento com Avaliação e Classificação de Risco; Grupo de Trabalho de Humanização; Clinica Ampliada; Visita Aberta com Direito à Acompanhante; Equipe de Referência e Apoio Matricial; Gestão Participativa e Co-gestão; Prontuário Transdisciplinar e Projeto Terapêutico; etc.. Acredito que seja para dar conta das demandas sociais.
Demanda explicita(do plano manifesto), quando um determinado segmento do hospital/Atenção Básica/etc. “vive momento de crise /quando vem a luz o problema”, acaba demandando de outrem alguma oferta que responda aos seus anseios. (Operamos com relações desejantes, que ao mesmo tempo serve como alavanca para transmutar também pode ser um elemento bloqueador no processo de mudança – especialismos)
– Que lugar alguém (usuários, profissionais, gestores, consultores) tem que ocupar, necessariamente, para implantar um dispositivo da humanização?
Essa questão é muito complexa. O lugar de um “não saber”. Dentro de uma dinâmica grupal, não significa se anular enquanto individuo, mas uma ampliação da escuta e de vinculo – sentir/perceber o outro. Dar passagem a outros saberes – incide na questão dos especialismos, que você está colocando em debate. (citado no primeiro comentário/parte da minha experiência)
“Desnaturalizar os especialismos é, portanto, questão central para aqueles que repensam a construção do conhecimento, que problematizam as dicotomias. Não se trata, entretanto, de negar o poder do especialista, isto seria uma farsa; farsa liberal. Cabe-nos pensar sobre seu funcionamento, sobre as práticas que tem implementado e sobre o desmonte daquelas que em seu próprio nome desqualificam as demais. Eis o nosso desafio: ocupar o lugar do especialista, desmontando-o a cada momento.” (Grupo – A Afirmação de um Simulacro/Regina Benevides de Barros, pág.226)
Então, nesse embate, que problematizam as dicotomias que o conceito Humanização vai agregando outros valores, assim tomando outro sentido na Saúde (outra roupagem/outra lógica). Somos nós colocando o conceito em movimento – dando visibilidade pensando/construindo estratégias para os problemas na saúde. Dispositivos que se entrelaçam/ transpassam e incidem sempre na discussão de processos de trabalho.
Construir um novo modo de pensar o trabalho, que não possui uma linearidade, mais sim processos descontínuos, de modo que adquire perfil, características, a partir das configurações das linhas de forças .
" Um dispositivo comporta, ainda, linhas de força. Aqui se destaca a dimensão do poder-saber. Estas linhas levam as palavras e as coisas à luta incessante por sua afirmação. Elas operam “no vaivém do ver ao dizer e inversamente, ativo como as flechas que não cessam de entrecruzar as coisas e as palavras sem cessar de leva-las à batalha”(Deleuze,1988). Estas linhas passam por todos os pontos do dispositivo."
OBS:
A ferramenta do dispositivo (do acolhimento, que experimentei) vem justamente falar de um “funcionamento”, e não de pessoas. Ela opera fora do âmbito da culpabilização. Ela opera na impessoalidade. Os dispositivos são conceitos que propiciam por meio de suas ferramentas objetivar aquilo que é relacional – transformar em realidade, resultados palpáveis (visibilidade dos trabalhos)
Blog do Altair Massaro (discussão)
Isso dá uma bela discussão; Experiência e técnica.
Ciclo de Conferências- Mutações: a experiência do pensamento, uma série de 20 reuniões com especialistas, para discutir sobre o atual espaço das reflexões humanas em um mundo dominado pela tecnociência. https://www.cultura.gov.br/culturaepensamento/?p=240
* As conferências do Rio de Janeiro serão transmitidas ao vivo pela Internet http://www.academia.org.br.
Bem legal!!! Uma forma de saber o que estão pensando atualmente (os movimentos)….é interessante escutar outros pensamentos.
– Esse lugar é compatível com a proposta ético-política da PNH?
Acho que respondi? Ou não?
A Razão e a Paixão Khalil Gibran
Vossa razão e vossa paixão são o leme e as velas de vossa alma navegante. Se vossas velas ou vosso leme se quebram, só podereis derivar ou permanecer imóveis no meio do mar. Pois a razão, reinando sozinha, restringe todo impulso; e a paixão, deixada a si, é um fogo que arde até sua própria destruição.
Que vossa alma eleve, portanto, vossa razão à altura de vossa paixão, para que ela possa cantar, E que dirija vossa paixão a par com vossa razão, para que ela possa viver numa ressurreição cotidiana e, como a fênix, renascer das próprias cinzas.
Renata Rozendo
Esse é apenas "um olhar" – (não é verdade absoluta). Aberto a comentários, críticas construtivas,… tá confuso?
Por Sonia Mara de Fatima Ferreira
Em Erechim realizamos este trabalho, nossos usuários são contra referenciados as unidades de saúde, todas complicações clinicas são acompanhadas pels ESF e Caps, nosso apoio se faz de caps para ubss e ubss para caps, hospital geral etc… concordo com voce e funciona muito bem aqui.