O paradoxo entre destino e incerteza

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Numa analogia que favorece o entendimento, a vida é como uma linha estendida ao longo de todos os instantes do tempo. O real, onde a vida se manifesta, pode ser representado como a base material que constitui essa linha imaginária. Ou seja, a linha é a base de onde vêm toda a matéria, desde as partículas elementares que são partes dos átomos, até as moléculas que os átomos formam passando pelas células da vida primordial e dos organismos complexos, incluindo o cérebro, a mente e o pensamento.

A percepção que temos da vida é, no entanto, muito limitada apesar da potência de nossa capacidade reflexiva e da racionalidade que produz nossas narrativas subjetivas, nossos mitos e crenças. Nós temos apenas a infinitesimal percepção de cada instante e a projeção probabilística, mas sempre incerta, em relação ao devir.

Então, grande parte da realidade está adiante, encoberta pela opaca nuvem das probabilidades e incertezas mais absolutas. De outra parte, toda experiência vivida nos acontecimentos fugazes da existência, resta sepultada na frágil e inconstante memória.

Contamos a nós mesmos fábulas sobre o que aconteceu, e o que desejamos que aconteça, com base nessa insuficiente percepção da totalidade que está em torno e dentro de nós. Ansiamos por permanecer nos bons momentos indefinidamente. Mas sabemos que isso é impossível e irreal.

Há cerca de 2.300 anos começamos a acreditar que não é nossa percepção que é imprecisa e turva. Duplicamos a realidade e passamos a acreditar que a realidade é uma sombra numa caverna iluminada pela trêmula luz de uma fogueira.  Assim, o mundo ainda recente das ideias foi identificado com a perfeição e com a eternidade.

A matéria, ou o real, foi considerado pervertido e passamos a viver num autoexílio da vida “como deveria ser”. Essa ilusão decorre de nosso desejo de eternizar o orgasmo, que vai se afigurar como o Jardim do Éden, paraíso celeste, paz universal, imortalidade, felicidade incessante e muitos outros nomes para reduzir a vida e o real em favor de uma crença irracional.

O que nossa percepção permite é a consciência da fruição de cada um dos instantes, bons e/ou ruins, diante da ansiedade com o que vem e com o esquecimento da maior parte do que aconteceu. A razão, surgida lentamente dos primeiros delírios da consciência e sempre acompanhada pelas demências que espreitam desde o abismo de nossa ignorância, permite – ao vermos a nós mesmos no ato de existir – intuir que qualquer falta no real é apenas ilusória.

Viver é ter a consciência de um instante numa linha que nos liga a cada ser humano que já existiu na terra, a cada um de nossos antepassados, aos primeiros organismos celulares, ao próprio planeta e a toda poeira de uma estrela primordial que explodiu para formar a nebulosa que deu origem ao sol.

Igualmente, de maneira, ainda inexplicável para os limites de nossa percepção e de nossa ciência, todos os instantes da vida de cada um de nós estão conectados ao futuro, seja ele qual for, ao mesmo tempo destino e ao mesmo tempo incerteza. A existência, que para o indivíduo é fruição temporal, é para o real o que ele mesmo é: Totalidade.

É um fato que a enciclopédia da vida está em nosso DNA, dentro de cada uma das células de nosso organismo. Casa instante de nossa existência que parece perdido no passado ou incerto no futuro, faz parte de uma totalidade. Se há um único Deus este universo é o seu: – Assim seja!

O que deliramos ser uma incompletude da existência é, de fato, uma incompletude de nossa percepção, de nossa experiência consciente de existir. Somos um animal como os outros. Viemos de um quase absoluto silêncio da percepção “da percepção”. Não sabíamos que éramos capazes de pensar. Lentamente fomos nos tornando capazes de pensar.  Recentemente estamos nos aventurando a pensar o pensamento.

Na filosofia e na física teórica estamos lidando com o desafio de pensar a Totalidade que nos foge a percepção. Esse movimento da consciência reflexiva poderá nos libertar do mito do pecado original, do mito da degeneração da matéria e da frustração de não podermos eternizar o gozo e exterminar a dor.

Do modo como duplicamos o mundo, separamos o que está conectado e  perdemos a noção de cumplicidade, coextensão e solidariedade. Assim, criamos noções ilusórias de culpa, livre arbítrio e moralismo.

Nada falta ao real. Nada falta ao desejo. Para persistir na existência será necessário reconectar a vida aos seus componentes e nossas ideias às suas origens e destinos: O real e o pensamento se movem em direção a mais complexidade e o aumento da complexidade expande e fortalece a vida.

O esforço de Nietzsche contra o ressentimento se baseou na reflexão sobre o imenso esforço humano em projetar o desejo para trás. Desejar profundamente um modo de se redimir do passado, de recomeçar, de retificar o acontecimento numa forma de redenção expressa essa inconformidade ressentida com a constante dissolução do passado em memórias e esquecimentos. Parece que a morte habita cada segundo que se projeta no abismo do passado.

Pouco depois de Nietzsche bradar suas complexas percepções como obviedades futuras – ele afirmou que nasceu póstumo – o início do século XX vai nos trazer nas teorias da relatividade e na mecânica quântica a expressão do grande paradoxo cognitivo que nos assombra. Ao estender as bases para a compreensão da unidade do tecido espaço-tempo através das teorias da relatividade e da mecânica quântica Einstein percebeu essa contradição que surge na mente humana em sua crescente apreensão do real.

O trabalho de Einstein demonstra, na relatividade do espaço tempo, um determinismo irrevogável. O nosso presente é o passado na perspectiva de um observador próximo a um corpo denso ou acelerado. Já a mecânica quântica é fundamentada no Princípio da incerteza de Heisenberg. A despeito da complexidade matemática dessas teorias, o que podemos assumir em termos filosóficos é que determinismo e incerteza estão coexistindo no âmago, no fundamento e na superfície do real.

Einstein dedicou sua vida a buscar uma teoria unificada de tudo. Ele desejou, como se já não tivesse sido responsável por uma revolução em nossa maneira de compreender o mundo, resolver essa contradição. Não foi bem sucedido. Talvez por ter imaginado que o paradoxo era um erro teórico e não uma característica da realidade.

Pode ser que não possamos entender o determinismo em que o passado se enclausura e a incerteza em relação ao futuro por duas razões simultaneamente: a realidade é incompreensível em si mesma e em nosso modo de pensar. Ou seja, o que não nos parece fazer sentido, não faz mesmo dado às características da instituição de nosso modo de pensar.

Nossa inquietação com a existência, o ressentimento que deriva na superstição e no moralismo decorrem de não aceitarmos o limite de nossa capacidade de pensar. Embora nosso modo de pensar venha da superação de uma forma anterior de existir, pensamos que o atual estado de nossa capacidade cognitiva é permanente e imutável. Estamos enganados. Conhecimento e superstição avançam e retrocedem, se movem de acordo com nossas renúncias ou ousadias.

Vemos no livro de Eclesiastes da Bíblia que pensar em termos de duplicação do mundo nem sempre foi a regra. Nesse texto, para muitos uma ode ao niilismo, vemos a concepção de que essa realidade é a única que existe e que somos parte dela e não os seres preferidos do deus criador. O texto não pede, não clama, mas busca a aceitação e a harmonia de se perceber pequeno em meio a vastidão do universo. “Come a tua comida, bebe o teu vinho e ama”. Esse é o caminho que a vida nos apresenta. Podemos seguir seu impulso e ampliar sua força como modo ético de viver ou renegar a vida e se ressentir na busca de ilusões.