O tempo sutil e eterno do acontecimento

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A fração de um trilionésimo de segundo, após o início da grande expansão do universo, marca o início da formação das partículas elementares. Instantes depois iria ocorrer a coesão entre prótons e nêutrons para estabilizar as órbitas dos elétrons e formar os primeiros átomos. No universo cada instante importa. Embora estejamos atados à noção de que o que importa é imutável, idêntico a si mesmo e eterno, os fatos que observamos são caracterizados pela constante mudança e transformação.

Algumas horas antes de meu pai conhecer minha mãe, no encontro que iria tornar essa minha existência possível, ele pensava em sair do Salto do Jacuí para tentar a sorte em Porto Alegre. Era um ex-lavrador sem muito estudo e sem profissão urbana. Toda sua existência nos próximos 52 anos iria se definir naquele baile em que ele teve a ousadia de convidar aquela moça para dançar.

Mas, como tudo que é definitivo na vida, algumas horas antes ele não imaginava que aquilo fosse acontecer. Ainda assim, olhando tudo em retrospectiva, 52 anos depois, ele soubesse que teria que viver exatamente a vida que viveu. No final, penso que ele sentiu que o destino que teve – e a pessoa que foi – estavam de pleno acordo com a pessoa que ele ousou ser. Os acontecimentos de uma vida recaem como um terno feito sob medida para cada alma. Também são o único estilo e moda que poderiam pertencer ao espírito daquele tempo.

De algum modo, a indeterminação e o destino só podem se resolver numa única e definitiva série de acontecimentos. Sem nenhum prejuízo da perpétua incerteza que caracteriza a experiência de existir.

O acontecimento é extremamente negligenciado por seres equivocadamente adeptos do idealismo como temos sido desde Platão. Esse filósofo não parece ter sido um idealista como é comum que se pense. De fato, a expressão “amor platônico” deveria denotar a mais profunda conexão entre um evento e a matéria ou a natureza.

Ao buscar o fundamento da realidade, Platão tinha em mente um profundo realismo e não a ideia como fundamento do real. Parece que dizer que o conceito é o fundamento do real é a mesma coisa do que dizer que a realidade tem um fundamento nas formas perfeitas dos conceitos. Mas não.

Sendo seres capazes de criar universos imaginários, temos negligenciado a importância maior daquilo que a cada instante resolve a indeterminação e a incerteza na forma de um evento. Não obstante, viver é precisamente isso: Ter todas as expectativas dissolvidas em acontecimentos a cada instante, para imediatamente, as perdermos no passado.

Ideias, conceitos, significados e sentidos surgem do jogo de projeções que realizamos a partir de uma composição constante, operada no inconsciente e na superfície mais rasa da consciência. Os sentidos e os significados – os nossos valores – surgem de uma capacidade de alternar entre esquecimento e memória.

O idealismo coloca nossas identidades presentes para atuar em incontáveis universos imaginários, utopias, distopias, esperanças, sonhos de felicidade… No entanto, a irrealidade dessa projeção resulta de que não somos idênticos a nós mesmos. Cada uma das projeções idealizadas (mesmo as projeções realistas) se colapsadas na forma de um acontecimento, fariam desaparecer o ser que as imaginou. De modo preciso, todo acontecimento nos faz mudar. No fim, o intervalo entre nascer e morrer é que configura uma permanência: A imutabilidade de uma história que aconteceu.

Meu pai, naquela noite, interrompeu sua trajetória no rumo da cidade grande para se casar e constituir, com aquela moça, uma família de cinco filhos, sendo eu o primogênito. Em 1990, cerca de 21 anos depois do encontro de meus pais, eu iria completar aquela trajetória. Viria para Porto Alegre, já com uma profissão urbana, para viver minha vida de adulto, casar duas vezes e ter um filho. Viram? Qualquer definição de si mesmo é um recorte que esconde muito mais do que mostra.

Bem, mas o importante aqui, para além de demonstrar o aspecto teatral de qualquer identidade, é descrever em que medida o acontecimento é definitivo e a imaginação construtiva. Parece trivial, mas vivemos de imaginações definitivas e acontecimentos desconstrutivos. Temos muita má vontade (para) com os fatos (acontecimentos) da vida. Mas é apenas neles que vivenciar a beleza se torna, genuinamente, possível.

A tua força emerge da composição entre o limiar do desejo e o espaço sutil e denso de tudo que te acontece. Mesmo a dor, o sofrimento e a angústia são necessários para, partindo de um evento, dar passagem à alegria e ao prazer na dança interminável da existência.

Você é feito do que te acontece e do que você faz com isso. O que você faz com o que você é não para de te modificar. Por essa razão é que você não pode ser você mais do que uma única vez. Seja na trajetória de sua alma ao longo de uma vida, seja em cada instante que te bifurca em diferentes versões possíveis (de ti mesmo).

O peso do acontecimento reside no fato de que, fora da imaginação, no campo da memória e do esquecimento, no âmbito do tempo, tudo acontece uma única vez. Por isso, a eternidade não é o vazio de uma linearidade infinita, mas a plenitude de um eterno retorno circular.