A condição de trabalhador é muito próxima do status ontológico do que chamamos de condição humana. Boa parte da teoria marxista é uma defesa da tese de reciprocidade entre o trabalho e a existência da espécie humana. Os seres vivos mantêm sua homeostase através do trabalho. Trabalhar está diretamente ligado, para fazer uma constatação básica, a efetuar uma conexão absoluta entre o fenômeno da vida como processo e os seres vivos, enquanto tal.
O fato de que o trabalho humano se serve da autoconsciência para estabelecer tecnologias que ampliam o escopo fisiológico de seus corpos através do uso da mente como um tipo único de ferramenta, não elimina, na verdade intensifica, a identidade entre vida e trabalho.
A doença da espécie humana, no capitalismo, consiste em radicalizar a ideia de identidade para a esfera do indivíduo. Isso produz o absurdo de nos sentirmos proprietários da vida, quando a realidade é, precisamente, o contrário. Essa doença elimina a percepção do caráter de integração, solidariedade, participação e cumplicidade de todos os seres vivos nos ciclos vitais, seja no interior de cada espécie ou na relação entre as espécies e o ambiente.
Toda a linguagem humana está contaminada pelo delírio do individualismo. Nós vivemos sob o sentido de dicotomias entre sujeitos e objetos, entre o eu e o outro.
Mas a condição ontológica fundamental é a de integração e de comunidade. Nesse sentido, a condição humana e o trabalho são diretamente inter-relacionados.
Por isso defendo que a separação entre nós e os trabalhadores terceirizados é absurda. Não existe essa dicotomia. Cada ataque a nossa condição de trabalhadores é um ataque a todo trabalhador. O inverso tem exatamente o mesmo efeito.
Aqui, apenas ressalto que cada ser humano é um legítimo produtor de riqueza na sociedade tecnológica. Tentar se manter vivo produz riqueza, produz excedente a ser expropriado.
O dado, como insumo para a produção de um procedimento terapêutico, pode emergir da interação entre um paciente – ocupado em superar sua patologia, afastado ou excluído de um emprego formal – e um pesquisador.
O trabalho inerente a essa interação está relacionado à riqueza que circula no atendimento à saúde, que essa interação trabalhosa, mas considerada, inapropriadamente, como algo à margem do conceito tradicional de trabalho.
A posição que defende que uma ou outra forma de trabalho é mais relevante, desconsidera o fato de que sem os pobres e miseráveis não há capitalismo, porquê o sentido da vida das classes médias é dado pela realidade da qual ela se julga se excluir pelo mérito. Ou seja, o sentido da vida dos remediados é dado pelo perverso contraste fornecido pelos que subsistem sem possibilidade de remediar-se.
Essa perversidade é nossa. É fundamentalmente nossa cumplicidade com o sistema.
Este tipo de disruptura na condição ontológica comum é o que explica o voto em candidatos de extrema direita vindo das pessoas com menos instrução e que vivem em condições mais precárias de trabalho, quando comparadas aos das classes médias.
Não é por acaso que um colega meu, ativista de redes sociais e militante de esquerda, diz que é na escola em que trabalhamos, que ele tem a única amiga que é eleitora do Bolsonaro. Aqui é impossível negar que temos implicação, por nossas próprias posturas e gestos, na ressurgência fascista.
Nossos colegas terceirizados podem ter sido capturados por subjetividades fascistas que habitam os nossos próprios recônditos psíquicos.
Eu não acredito em culpa. Mas se possuímos agência por um lado, se somos protagonistas, também é um fato que não podemos estar isentos em absoluto de qualquer fenômeno histórico social. Não se trata, portanto, de culpa.
O caso é de implicação. Se todos resistimos ao fascismo dentro de nós mesmos, também é verdade que não somos menos implicados que miseráveis ou ricos, nos valores inerentes ao capitalismo. Como o fascismo é uma face do culto ao dinheiro, todo fascismo nasce e se alimenta da sacralização do símbolo e da profanação do real.
O dinheiro é um símbolo da força da vida. É uma expressão de fé na riqueza objetiva que produzimos. O capitalismo depende de invertemos o sentido desse fato submetendo a vida a um demiurgo: o dinheiro.
A condição do trabalho é ontológica. O trabalho deveria ordenar o capital. O fato de o capital controlar o trabalho, significa que a vida está submetida a mera aparência ou representação. E, como conceitos possam fazer parte da realidade, isso não implica em que determinem a vida.
No entanto, modos de viver podem se divorciar da vida. Como tal, eles podem destruir as formas de vida que os adotam. Embora a vida, como um fenômeno, não precise de nenhuma espécie, em particular.
Nossa existência é parte do mundo. Mas o mundo não depende de nós. Quem deve se adaptar para persistir é a espécie, segundo o contexto ambiental.
Está claro que nossa indisposição generalizada em relação ao trabalho consiste num ressentimento contra a vida. O valor do trabalho em sua relação com a vida está deturpado no modo de viver que esposamos.
Quando um modo de vida serve a aniquilação…