O único  valor da vida é o que lhe damos

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A degradação da vida dos indivíduos é um fenômeno físico de caráter bioquímico. De fato, quando falamos da vida, queremos dizer de um fenômeno do qual a morte é um capítulo plenamente integrado. Anterior a morte, a vida tomou o curso de uma estratégia de complexificação que implica em persistir na existência através da diversificação. Esse processo dá origem a um resto que se recicla em matéria orgânica. Este resto é reutilizado na a formação de novos seres vivos, uma vez que o par necessário a geração de novos seres vivos já cumpriu essa etapa do processo da vida mais ampla da espécie. Como ferramenta de adaptação, essa forma de reprodução dos seres vivos dá origem a novas espécies conforme o ambiente vai se transformando.

Não há, nesse processo, nenhum valor ou sentido. Como o sistema solar se forma, juntamente com seus planetas, segundo às regras fundamentais das interações entre as partículas elementares, o fenômeno da vida emerge e segue um curso de complexificação e anti entropia. Trata-se de um ordenamento provisório que parece resistir à tendência das partículas a se esfriarem. Seres de entropia lenta que somos, nós nos desenvolvemos no sentido de criar valores, num universo de leis simétricas e impávidas, absolutamente plenas. Ao buscarmos entender a nós mesmos e ao universo que habitamos, tendemos a projetar sobre a realidade a incompletude precária de nossas conclusões.

Apenas recentemente percebemos que nossa percepção está em processo, que ela mesma é decorrente, está integrada e de acordo com as leis fundamentais da matéria e de sua interação nas formas da vida e dos seres vivos. A vida encontrou um caminho fortuito até os seres humanos. Somos efeitos de seus movimentos e interdeterminações. Persistir na vida é, em parte, uma programação inscrita em nossa biopsicologia. Também é uma inclinação a qual podemos renunciar.

Bandos de humanos caçadores coletores oscilaram mais ou menos próximos da extinção e da sobrevivência por incontáveis gerações durante centenas de milhares de anos. Num ponto, constituímos sociedades complexas que se desenvolveram e decaíram, sempre proporcionando um resto que, de ciclo em ciclo, deu origem à sociedade precariamente planetária em que estamos vivendo agora.

Recentemente o grande público veio a saber um fato sobre a biografia do cientista que coordenou os esforços de desenvolvimento da Bomba Atômica no contexto do final da segunda guerra mundial. Julius Robert Oppenheimer. Em sua juventude ele chegou a pôr em ação a tentativa de assassinar seu orientador. O evento foi frustrado e não teve consequências jurídicas ou penais.

Qual o significado de uma mesma biografia contemplar uma tentativa de assassinaro de um lado e de outro a participação no Projeto Manhattan?  Trata-se da coincidência de algo tão raro, em termos estatísticos, como o envolvimento no fato, central para a espécie humana, da construção de uma arma de destruição em massa que ameaça a continuidade da existência da civilização e, no limite, de muitas espécies, inclusive a nossa, e a experiência de tentar matar alguém, algo também, raro em qualquer amostra estatística dos seres humanos.

Análises racionais parecem justificar e tornar tão necessário, quanto inevitável, a concepção, construção e o uso das armas atômicas e nucleares. Mas o pressuposto aqui é de que conhecemos algo decisivo sobre a espécie humana. O que isso significa? Somos uma espécie assassina desde sempre? É isso, de modo decisivo, que nos define? É possível persistir na existência tendo esse caráter?

Não conhecemos uma civilização viva que tenha existido por mais tempo do que nós e que superasse os obstáculos que estão dentro e diante de nós. Como espécie podemos nos considerar uma criança deixada na orfandade no interior de uma floresta. Mas isso só é verdade se atribuirmos ao fato de sermos conscientes, uma separação entre a humanidade e às espécies que deram origem a nós. Se nós tomarmos como uma linhagem integrada a natureza, o que podemos saber sobre nossos antepassados, o conhecimento sobre eles e sobre nós mesmos, pode atuar como uma herança decorrente do cuidado e do poder dos humanos primitivos. Estamos, em alguma medida, sozinhos. Mas o que sabemos constitui uma herança a ser percebida como cuidado e elo de ligação. Podemos não ter um pai. Mas somos filhos de inúmeras e sucessivas mães. Às espécies que nos precederam e da qual recebemos o legado de nossa potência.

Evidências de que estamos novamente sob ameaça de extinção

O fato de que apenas um pequeno grupo de pessoas seja capaz de cometer assassinatos, não significa que só essas vivam de acordo com uma lógica de instrumentalização da vida. De modo evidente tratamos a vida como mercadoria em relação à centralidade do capital no modo de vida capitalista.

A radicalidade do assassinato está na objetificaçao da existência de nosso semelhante num grau suficiente para gerar a ação de buscar fazer cessar sua existência. Geralmente isso ocorre no contexto de um conflito. Pode parecer que é ou que seja de fato o caso do assassino e a vítima terem a mesma disposição, sendo que a sorte ou a capacidade seja o que distingue uma e outra condição.

Porém o número de pessoas que morrem como efeito colateral dos conflitos é cada vez maior. Dado que a lógica do assassinato consiste de uma objetificação da vida, segundo uma lógica de concretizar objetivos supostamente superiores a vida, não há vida sagrada, não há existência com valor superior ao que leva ao assassinato. Mas, como efeito de um modo de vida, a estrutura social que instrumentaliza a vida é toda ela cúmplice desse efeito da construção compartilhada da ordem dos valores.

Desse modo, crimes de ódio e crimes na busca de bens ou valores monetários são sempre decorrentes do fato social de a vida deslizar na escala de valores para um lugar abaixo dos “interesses” humanos. Esses interesses correspondem a valores construídos e compartilhados através das gerações.

Por outro lado, somos incapazes de desenvolver qualquer tipo de interesse sem o investimento amoroso. É necessário que outros seres humanos invistam parte significativa de suas existências na forma de atenção, cuidado e amor à cada um de nós. Sem isso, não nos desenvolvemos fisiologicamente, nem durante a gestação, nem durante a infância. O ser humano constituído sem o investimento afetivo e amoroso é uma ficção.

Assim, a vida humana é um efeito direto do investimento da existência de humanos na humanização da geração seguinte. O valor dos interesses humanos decorre da vida e, portanto, a vida consiste no valor de todos os outros valores. No entanto, a abertura para a constituição desses valores é tal, que uma coletividade pode se autodestruir na medida em que constitua valores que são opostos a saúde e a persistência dela própria na existência.

O assassinato ocorre por interesses que tomam a existência do outro como um obstáculo a saciedade de algum objetivo. A vingança, a impossibilidade de submeter, provocar a submissão pelo exemplo, são alguns dos motivos para o cometimento de assassinato além do desfecho de um conflito de ânimo mais ou menos mútuo por diversas razões, inclusive a autodefesa, quando a reação da vítima inverte a intensão do assassino.

Costumamos pensar que, em uma sociedade em que o assassinato se torna estatisticamente significativo, ocorre de uma gradual e histórica degradação da vida como valor determinante, em relação aos nossos interesses.

Mas o valor da vida não é dado na consciência. O valor da vida é uma construção da consciência que se experimenta na medida em que a linguagem vai se complexificando. Pensamos o fato de estarmos vivos simultaneamente ao dar-se o saber de estarmos destinados à morte.

Não está claro que a sacralidade da vida não seja um conceito profundamente entrelaçado à consciência da morte como um destino. Antecipar pelas próprias mãos o destino que temos, ao fazer cessar a existência de alguém implica numa negação do valar da própria existência, em relação ao valor que nos impele ao assassinato. Ou seja, de fato a intolerância para com a violência constitui-se no interesse comum. É assim que experimentamos uma parte significativa de nossa vida em sociedade. Nossa cultura está imersa em extermínio, genocídio e exploração. Não podemos seguir em frente sem olhar para isso de frente. Sem reconhecer que a solidariedade que constitui nossa humanidade é anulada na sacralização de mitos como o capital como valor que submete a vida.

A produção de conflitos de morte, seja no contexto da violência urbana global, ou nas disputas geopolíticas do século XXI, estão submetidas a uma lógica econômica. Não em termos de ser a causa. Isso é difícil de ser inteligível para o escopo de nossa percepção, talvez até das nossas possibilidades cognitivas. Porém é a explicação referente ao fenômenos para a qual dispomos de mais evidências.

A guerra da Ucrânia, responde por interesse imediatos do funcionamento da indústria da morte na qual as economias das nações do planeta estão mais ou menos implicadas.Há disputas históricas por hegemonia global entre as superpotências, bem como a luta por recursos naturais energéticos entre muitos outros fatores. Mas o fato de que o modo de vida das pessoas depende do consumo de insumos de guerra como armamentos e munições não é desprezível para quem tem algum controle sobre às econômias nacionais e multinacionais.

A violência urbana, o crime organizado em torno da influência política e tráfico de drogas, orgãos e toda sorte de comércio ilegal também tem uma relação direta com a ordem econômica. Toca o modo de vida e os valores das massas e das elites governantes em todas as sociedades. A economia resume e integra os fatores antropo técnicos que dão forma a nossos modos de vida.

Esse elenco de parágrafos, na forma de ideias interconectadas, apresenta argumentos em favor de uma análise da sociedade com a seguinte tese:

– Quando o interesse comum pela vida degenera em função de um outro valor, uma sociedade planetária, abandona os ciclos históricos de ascensão e queda de civilizações regionais, para se tornar vulnerável à degradação de si mesma. É evidente que não valorizar a vida, no caso da humanidade como espécie dominante em nível planetário, implica em renunciar à existência.