Igualdade e sofisma jurídico: ética não se fraciona

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Finalmente o CREMERS veio a público expressar as razões da proposição da ação que pede o “direito” dos cidadãos poderem pagar por serviços médicos exclusivos e acomodações diferenciadas no âmbito do atendimento do SUS. Depois de várias semanas decorridas da sentença, ainda provisória nos demais municípios onde ela tramita, e de várias manifestações públicas de gestores e das instâncias do controle social pareceu-lhes oportuno apresentar suas justificativas.

A triangulação de interesses envolvidos na fundamentação da iniciativa é curiosa. Um eminente operador do direito gaúcho e os médicos diregentes do CREMERS, ambos potencialmente profissionais liberais, aliados aos magistrados do supremo, servidores públicos, produziram uma pérola de argumentação hermética, que em parte foi reproduzida nos maiores jornais do Estado e que eu reproduzo na íntegra logo abaixo.

Usando um jargão técnico que em lugar de transparência dá a iniciativa o tom de legitimidade incompreensível para a maioria dos usuários do SUS, eles parecem arrogar para sua tese a autoridade do mistério.

Em suma, o direito de pagar por acomodações hospitalares mais confortáveis e de garantir a autonomia do paciente, resumindo-a a escolha de um único profissional em uma equipe multidisciplinar é apresentada como um dever do Estado e direito do cidadão.

E sempre que o Estado não puder prover plenamente este direito com os cerca de 40% de impostos retirados da renda de todos (especialmente dos mais pobres) pode o cidadão, com seus próprios recursos adquirir a tal qualidade nas relações médico paciente que lhe estaria sendo negada pelo Estado.

A falácia aqui é o reconhecimento dos representantes da classe médica e dos magistrados que o serviço que prestam a população, ao soldo de recursos públicos, pode não ser o melhor, muitas vezes seria até insuficiente. Ou seja, o juramento de Hipócrates pode estar sendo cumprindo, apenas em parte, devido as injunções políticas que impedem os médicos de cumprirem integralmente com seu dever.

Mas, não entrem em pânico, por módicos preços a serem combinados entre as partes, a parcela de ética e eficiência técnica pode ser adquirida por fora. Com anuência do STF. Muito bem argumentada e fundamentada. Inconstitucional seria submeter o cidadão ao constrangimento de um atendimento "meia boca" se lhe sobrarem os recursos para comprar o melhor possível.

Ora, leiam o enovelado conjunto de argumentos dirigidos a uma população usuária de cerca de 200 milhões de pessoas e vejam o que é mais plausível:

• Ou, de um lado, tanto a ação, quanto a sentença reconhecem que a atenção básica, de média e alta complexidade em saúde é insuficiente e a qualidade será leiloada pelo maior preço.
• Ou, então, depois de tudo o que pagamos em impostos diretos e indiretos temos uma saúde pública de qualidade e mesmo assim algumas pessoas dispõe de recursos sobrando e pretendem premiar os médicos e pagar por acomodações luxuosas. Isso mesmo já tendo pago pelo essencial, que é o atendimento de acordo com o padrão ético e constitucional de integralidade e universalidade no acesso a saúde.

Evidentemente que a redução das desigualdades sociais vem sendo construída ao longo da curta história de nosso Estado Democrático de Direito. Mas a capitulação não poderia vir justo do STF. E além disso ser proposta em nome da reserva de mercado de um grupo que, assim como os magistrados, vive nos andares mais bem remunerados de nosso substratos sociais e econômicos. 

Desconhecem os proponentes e os magistrados o fato de a saúde complementar estar prevista na constituição e ter justamente o objetivo de oferecer conveniência de consultório e de hotelaria a quem o desejar e puder pagar. Somente isso porque o cuidado de alto custo em saúde só é efetivamente oferecido pelo SUS.

Para completar apresentam a argumentação em um jargão jurídico que só pode fazer sentirem-se humilhados os cidadãos que agora sabem que para ser bem tratado por um médico é preciso manter relações clínicas freqüentes com o mesmo e pagar, em separado, para que ele venha em nosso socorro quando cairmos “nas garras” dos servidores públicos do SUS.

Francamente, a impressão que fica é a de que os magistrados do STF quiseram estender aos usuários do SUS os privilégios que tem como usuários do sistema de saúde complementar e privado. Ou seja, comunicam a população com sua sentença e seus argumentos que pouco se pode esperar do Estado quando se é um usuário do SUS. No mínimo muito menos do que quando se é um servidor público do judiciário. 

Todos reconhecemos o valor do SUS a partir da publicidade dada ao sistema de saúde norte americano.  Um sistema que consumindo cerca de 800 bilhões de dólares, oferecia uma cobertura inferior ao SUS que é financiado com menos de 50 bilhões de dólares ao ano.

A reforma do sistema de saúde nos EUA vai mais no sentido da eficiência dos gastos do que na da promoção da igualdade. E no Brasil a sociedade precisa exigir que uma parcela muito maior dos impostos seja aplicada em saúde, ao mesmo tempo em que fiscalize rigorosamente os gastos.  A promoção da igualdade social é nossa divisa maior como civilização em construção. Este foi o espírito que animou os constituintes de 1988.

O que chama atenção é que o judiciário é bem financiado em nosso país. Embora a proporção de juízes para cada 100 mil habitantes seja insuficiente, os que estão no exercício das funções figuram entre os servidores públicos mais bem pagos no Brasil.

O que se espera desse judiciário é que ele emita sentenças no sentido de diminuir as desigualdades sociais e não no sentido de consolidar o lugar de cada classe e seu grau de acesso aos serviços públicos de qualidade. 

O fato cultural é que o padrão de vida destes eminentes cidadãos do supremo está bem longe do daqueles que os sustentam e a sentença é proferida como se o mundo deles fosse o de todo o contribuinte. O mesmo vale para os médicos que representam uma categoria que vem se proletarizando a cada década. Mas que ainda tem em suas lideranças cidadãos de classe média alta, o que não é crime, ao contrário, apenas é desejável para todos.

A igualdade na constituição brasileira foi inscrita contra os privilégios da “casa grande” em relação aos descaso em relação aos cidadãos confinados nas senzalas e guetos. A sentença do STF vai no sentido de acentuar as já grave desigualdades no ceio da maior conquista igualitária de nossa história.

Finalmente, deixo o texto do eminente coordenador da Assessoria Jurídica do CREMERS para quem se interessar por decifrar os argumentos que bem entendidos significam: Farinha pouca, meu pirão primeiro!

 

SUS – Direito de todos e dever do Estado
Autor: Dr. Jorge A. Perrone de Oliveira


Cargo: Coordenador da Assessoria Jurídica do CREMERS

Tendo em vista algumas manifestações de gestores e ao que se noticia de representantes dos Ministérios Públicos do Estado e da União acerca de decisão do STF, que, interpretando a Constituição Federal, entendeu que, sendo o atendimento pelo SUS um DIREITO DE TODOS, as pessoas possam pleitear o atendimento de internação e honorários médicos diferenciados, pagando o que for acertado, alguns esclarecimentos se tornam necessários.

O argumento das críticas é que tal decisão criaria uma “quebra da igualdade” ou “desequilíbrio perigoso”.

O CREMERS tomou a iniciativa de propor diversas ações civis públicas, buscando o reconhecimento desse direito de TODOS e a preservação da autonomia do paciente e a relação médico-paciente.

As ações foram movidas contra do Estado do Rio Grande do Sul, enquanto gestor do SUS e contra todos os municípios em que a gestão do SUS é plena. Assim, a decisão proferida no feito relativo ao município de GIRUÁ é apenas a primeira, que tem trânsito em julgado, não cabendo mais qualquer recurso. Várias outras se encontram no STF, SENDO QUE EM DUAS JÁ HÁ DECISÕES MONOCRÁTICAS DOS MINISTROS AYRES BRITO E CARMEN LÚCIA, no mesmo sentido, embora ainda estejam pendentes recursos da AGU.

O CREMERS entendeu de propor tais ações a partir da constatação de que, quando o paciente individualmente buscava o Judiciário Estadual, em demandas contra o Estado (como gestor), buscando o reconhecimento desse direito, garantido pelo art. 196 da CF/88, as decisões eram INVARIAVELMENTE FAVORÁVEIS. Assim decidia o TJRS e suas decisões eram mantidas pelo STF,

Ante tais circunstâncias o CREMERS buscou que a Justiça Federal (competente porque o Conselho é um autarquia federal) estendesse EFETIVAMENTE A TODOS, pelo menos dentro do âmbito da sua jurisdição, tal direito, que vinha sendo reconhecido em ações individuais.

Cuida-se de aplicar o art. 196 da CF: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos e ao acesso universal igualitário, às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Além desse direito constitucionalmente garantido à saúde, criava-se o SUS – SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE – para um atendimento UNIVERSAL, a ser executado diretamente pelo poder público ou por pessoa física ou jurídica de direito privado (art. 197), para cuja consecução estabelecia DETERMINAÇÕES – GISE-SE ATÉ HOJE NÃO CUMPRIDAS DE FORMA DEVIDA – no sentido de alocação de verbas, em todos os níveis do Estado (União, Estados e Municípios), que permitam o financiamento desse sistema, que pela sua universalidade é efetivamente único no mundo.


O dispositivo honrava o compromisso que o Brasil assumiu ao tratar na Carta de 88 dos Princípios Fundamentais da República que constituía como Estado Democrático de Direito (art. 1º). Já ali dentre outros apontava o texto para a dignidade da pessoa humana (inciso III). Em seguida a CF alude no art. 3º aos objetivos da República, colocando expressamente entre eles o de promover o bem de TODOS (inc. IV). Culminou o legislador constituinte em estabelecer que os direitos fundamentais são de TODOS, e garantidos e brasileiros e estrangeiros residentes no país (art. 5º).

O STF, naquelas ações individuais, todas oriundas do Rio Grande do Sul, acima mencionadas, havia firmado o entendimento de que “O direito à saúde , como está assegurado no art. 196 da Constituição, não deve sofrer embaraços impostos por autoridades administrativas, no sentido de reduzi-lo ou de dificultar o acesso a ele. INEXISTÊNCIA NO CASO DE OFENSA À ISONOMIA”. Essa citação é retirada de dois acórdãos diferentes, mas sobre o mesmo tema, um da lavra do Min. MOREIRA ALVES (re 261.268/RS) e outro do Min. ILMAR GALVÃO (RE 226.835/RS), em DECISÕES UNÂNIMES, que serviram como “leading cases” a balizar os acórdãos posteriores.
No caso de Giruá, julgada improcedente a ação civil pública, tanto pela Justiça Federal de Primeiro Grau, como pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, o CREMERS ingressou com Recurso Extraordinário junto ao STF, tendo ali o Min. CELSO DE MELO proferido a decisão provendo o recurso, e que agora transitou em julgado.

Diz o eminente ministro que o STF vem observando em sucessivos julgamentos esse entendimento, e além dos dois arestos acima referidos aponta para outros – IGUALMENTE TODOS DO RIO GRANDE DO SUL – dos Ministros SEPÚLVEDA PERTENCE, EROS GRAU. CARLOS BRITTO E CARMEN LÚCIA.
Consta ainda da decisão, e são palavras do Relator que o “o exame da causa evidencia que o acórdão ora impugnado diverge da diretriz jurisprudencial que esta Suprema Corte firmou na matéria em referência”.

Por sua vez, em sua decisão já mencionada, embora ainda pendente recurso da União, a Min. CARMEN LÚCIA adotou a mesma fundamentação, provendo o Recurso do CREMERS, em ação relativa ao município de Santa Cruz, acrescentando ainda precedentes dos Ministros JOAQUIM BARBOSA, CEZAR PELUSO E MAURÍCIO CORREA, mostrando que tem se mantido FIRME a jurisprudência pacífica da Corte.

Vê-se, assim, que a decisão ora objeto de crítica não é nova, e sim alicerçada em pacífica orientação do Tribunal, ao qual a Constituição outorgou a tarefa de ser o intérprete máximo da Constituição.

As alegações do Estado e dos Municípios réus das ações se cingem a que o SUS, mediante ato administrativo da Ministério da Saúde proíbe a chamada “diferença de classe”, como o fez o antigo INAMPS em portaria, porque admiti-la seria quebrar a igualdade de tratamento (isonomia).
Pois bem, as reiteradas decisões do STF são no sentido de que, sendo o atendimento universal pelo SUS um DIREITO DE TODOS, não pode mero ato administrativo reduzir ou dificultar o acesso a ele.

O STF decidiu sempre que os “EMBARAÇOS IMPOSTOS POR AUTORIDADES ADAMINISTRATIVAS (LEIA-SE GESTORES)” eram exatamente a Portaria do INAMPS E A RESOLUÇÃO, que proibiam a “diferença de classe”.

As autoridades em questão, mesmo ante TODOS os precedentes da mais alta Corte do País preferiam cumprir as decisões nas ações individuais, mantendo a ilegalidade quanto aos demais. As ações do CREMERS visaram justamente a fazer com que as autoridades administrativas CUMPRISSEM as decisões do STF em relação a TODOS, neste Estado.

Queriam (ou querem) tais autoridades fazer prevalecer o comportamento infelizmente tão comum na administração pública brasileira de cumprir da lei “apenas o que interessa”.
Tais autoridades lêem o art. 196 da CF de forma diferente (e errada) daquela que faz o Supremo Tribunal Federal, que, dentro do sistema democrático em que vivemos, decide as questões relativas à interpretação da Constituição. Isso significa que não entendem que o dispositivo tenha criado ou garantido um DIREITO A TODOS e sim que “apenas” teria estabelecido uma espécie de “norma programática”, pela qual o Estado, em todos os seus níveis deveria “se esforçar” para atingir a meta.
O STF, porém, mostrou que a leitura CORRETA é a de que o dispositivo ESTABELECIA UM DIREITO A TODOS, e que PARA GARANTIR o exercício desse direito o Estado devia criar políticas sociais e econômicas.

Dessa forma a Portaria do INAMPS, anterior a Carta de 88, era incompatível com a Constituição, pois embaraçava o exercício do direito. Da mesma forma a Resolução do SUS, que é posterior, sofre do mesmo vício de inconstitucionalidade.
Da mesma maneira que o STF reconhece que se é um DIREITO TODOS PODEM EXERCÊ-LO, o que implica que DEVA O SUS ARCAR com as despesas que TERIA QUE SUPORTAR DE QUALQUER FORMA, também reconhece que no exercício desse direito NÃO HÁ QUEBRA da ISONOMIA (igualdade de atendimento), que é outro argumento amiúde utilizado. Com efeito, o que a Corte estabeleceu é que se o direito é de todos, ao exercê-lo ninguém está quebrando com a regra da igualdade – TODOS O EXERCEM DA MESMA MANEIRA. Assim, se alguém tem DIREITO a que o SUS pague as despesas de internação e honorários médicos, o gestor deve PROMOVER O ATENDIMENTO. Exerce-se o direito de maneira universal e igualitária. A diferença está em que aquela pessoa que tenha condições e possa pagar negocie com o prestador de serviço (hospital) e com o médico um atendimento em outras acomodações e por um valor de honorários maior, arcando o SUS unicamente com o que TERIA DE SUPORTAR DE QUALQUER FORMA. Da igual sorte, o atendimento aos outros pacientes, que não tem condições, seguirá da forma oferecida pelo SUS, já que o direito é de todos e a todos deve ser garantido.

É evidente que se o atendimento se der em hospital público, cujo atendimento é única e exclusivamente pelo SUS, não será possível a busca dessa diferença.

No entanto, e isso é quase que uma peculiaridade do nosso Estado, aqui, ao contrário da maioria das outras unidades da federação, o atendimento em sua maior percentagem não se dá em hospitais públicos e sim em conveniados em geral santas casas ou filantrópicos), em que uma parte se dá por atendimento do SUS e outra tem disponibilidade de leitos diferentes. Só aí tem cabimento a invocação da diferença, para pagamento conforme acerto.

Por fim, a decisão preservou a relação médico-paciente, ao permitir que o paciente pudesse ser internado diretamente a pedido de seu médico, sem que se torne obrigatória a passagem por posto de saúde ou emergência, acabando com aquela situação constrangedora de a pessoa acabar sendo atendida por médico que lhe é absolutamente estranho…

A decisão não inviabiliza o SUS, como pretendem alguns críticos, e sim faz com que se torne EFETIVA a norma constitucional de acesso universal ao SUS.

A questão na verdade pode ser que haja o receio de que o cumprimento da decisão revele fragilidade do sistema, decorrente da FALTA DE UM CORRETO FINANCIMENTO, que também a CF previu e que vem sendo “sistematicamente” (perdão pela repetição) descumprida pelos diversos níveis do Estado brasileiro.