Humanização: O Novo Lugar dos Humanos no Trabalho em Saúde

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Introdução

Desde o final de 2008 eu venho escrevendo uma série de artigos sobre as inovações tecnológicas no cuidado a saúde das populações e indivíduos. Trouxe para a reflexão as idéias de Bruno Latour, Michel Serres, John Gray, Michel Foucault, Nikolas Rose e Paul Rabinow, a respeito do impacto das novas tecnologias na chamada “natureza” do que se convenciona chamar de fenômenos humanos.

Sei que estes autores advogam suas teses a partir de diferentes teorias do conhecimento. No entanto o traço comum que percebo nos escritos deles é a intuição de que a humanidade esta efetuando uma mutação radical em sua identidade. Admito que reconhecemos uma condição humana comum desde uma linhagem ancestral que inicia com os homens das cavernas.

Mas a definição de humanidade ou de ser humano, nos termos do humanismo recente, não cabe mais em parâmetros usuais há cerca de menos de um século, quanto mais ainda a da pré-história. E é difícil encontrar quem de fato deseje ser um humano dos tempos da caça e coleta. Menos ainda quem se disponha a retomar o modo de existência comum da idade média. E não tarda a chegar o tempo em que ser como somos hoje, poderá ser tão distante, em termos práticos, como estamos de um ameríndio na era pré-colombiana.

É consenso que qualquer nova tecnologia redefine as relações humanas desde que os homens das cavernas aprenderam a controlar e utilizar a energia do fogo. De certa forma tudo muda e não há retrocessos embora os ganhos e as perdas se mostrem recorrentes. Num certo sentido, como define John Gray (2007), não há propriamente uma evolução já que junto com as inovações e confortos, novas contingências e efeitos colaterais se agregam a cada estágio de desenvolvimento tecnológico.

 

O admirável mundo novo

A vertiginosa aceleração das tecnologias da informação, robótica, genética e microinformática neste início de século têm transformado a noção do que seja o trabalho em saúde. Basicamente estamos tendo que aceitar as parcerias entre os artefatos não humanos que estão sendo (ou se) introduzindo nas relações humanas. Seja como mediadores, seja como protagonistas, os não humanos estão assumindo um novo papel, numa ação sobre a vida que seria impossível de ser replicada por nossas próprias mãos.

Um robô que opera um paciente em uma sala cirúrgica, controlado de forma remota por um cirurgião em outra sala é ao mesmo tempo um mediador e um protagonista. Ele aperfeiçoa a neuromotricidade fina humana ao mesmo tempo em que faz a intervenção cirúrgica assumir um status completamente novo.

Incisões de entrada de menos de dois centímetros que acessam órgãos com pinças e tesouras de menos de um centímetro são ganhos de qualidade em intervenção cirúrgica que aliam eficácia e redução de custos.

Como temos experimentado ao longo dos últimos séculos as barreiras culturais retardam e adaptam revoluções tecnológicas. Mas não podem impedir a transformação que as novas tecnologias produzem. O mundo mutante no qual muitos de nós já nascemos e outros aprenderam a aceitar como natural ao longo da vida já é real e nenhum saudosismo nos devolverá ao tempo perdido.

Isto põe em cheque a figura do cirurgião, por exemplo. Um emblema do poder do conhecimento ao longo de todo o século XX. Os números , inclusive, indicam o crescimento das cirurgias feitas com autômatos guiados por humanos da mesma forma que ocorreu com as vídeos-cirurgia nos anos 90. Assim, mais cedo ou mais tarde, se tornará trivial vermos enfermeiros robôs, monitoramento on-line de sinais vitais, entre outras novidades. Exatamente como os próprios pacientes controlam os níveis de glicose no sangue atualmente.

Então, podemos concordar que este quadro se estende a todas as profissões e equipes que integram o trabalho em saúde. Robôs podem dispensar dietas, recolher roupas sujas, medicar, anestesiar, operar pacientes, entre outras aplicações ainda nem sequer imaginadas que irão deslocar o lugar do humano no cuidado aos humanos.

Lembro bem de um artigo meu de 2009 que tenta definir o Cartão SUS como um parceiro não humano no trabalho de produção de saúde e de uma vida saudável. Um artefato de natureza e cultura simultaneamente. Ou seja, seguindo Latour e Serres, que não se restringe a ser natural ou cultural, mas sim a articulação de ambos.

A Internet e o Google mudaram os pacientes em um nível que em alguns centros acadêmicos de pesquisa e desenvolvimento tecnológico se vislumbra que em poucos anos eles serão considerados parceiros devido a seu protagonismo na prevenção e tratamento de sua saúde. Hoje se projeta que os prontuários dos pacientes serão tão portáteis quanto uma lista de telefones, de e-mails, um arquivo de MP3 ou nossos dados bancários. Exatamente como eu havia relacionado a tecnologia do cartão SUS, a do cartão bancário e de crédito. Enquanto o primeiro hiberna na burocracia ministerial, o segundo já faz parte da vida dos correntistas desde meados dos anos 80.

Numa equipe cada vez mais multidisciplinar, a articulação e a transversalidade nas ações de saúde diminuirão drasticamente as necessidades de internação e de leitos de longa permanência que migrarão para os lares dos doentes.

Enfim, uma grande agilidade e queda nos custos em diagnóstico e intervenção são vista como iminente em cerca de uma década e meia no Brasil e menos tempo ainda nos países desenvolvidos. Milhões de trabalhadores terão de se reinventar profissionalmente.

 

Um caminho para a mudança

Nossa rede de Estratégia de Saúde da Família, em expansão, está bem adequada a estes novos aparatos de atenção integrando a saúde básica com a média e alta complexidade. O trabalho em equipe que irá operar estes novos recursos tecnológicos e inteligências artificiais está em franca expansão em nosso país. Uma forte discussão deve se iniciar a respeito de como adaptar as pessoas e as instituições de saúde aos novos recursos disponíveis.

Como todas as mudanças revolucionárias, mesmo em nosso tempo em que tudo está revolucionando, certamente as da saúde terão desdobramentos dramáticos. Profissionais dispostos a aprender novas formas de inserção nas práticas de cuidado terão mais relevância. Enquanto que os nichos tradicionais de exercício da medicina e outras profissões irão se extinguir rapidamente com o desaparecimento de seus usuários e de seus operadores.

O aspecto dramático destas mudanças é que poderemos ver o tipo de substituição de mão de obra humana por tecnologias pesadas e leves que vimos no sistema financeiro e nas montadoras de automóveis no final do século XX.

Mas se os trabalhadores da saúde souberem compor com os novos parceiros que estão emergindo, será possível encontrar um espaço para o trabalho em saúde ainda mais amplo do que atualmente. Uma aliança que tornará aliados robôs, inteligência artificial e conexões eficientes entre quem produz o conhecimento e quem o aplica ao redor do planeta.

Aliás, o conhecimento será produzido em aliança entre os laboratórios e os campos de aplicação terapêutica devido à velocidade em que as evidências empíricas fluirão do campo – a vida das pessoas – de volta aos laboratórios. Isto tem sido chamado por alguns de medicina baseada em evidências. Não porque antes não tenha sido, mas porque hoje a evidência estatística de uma terapêutica posta em uso estará disponível em menos de um semestre.

Em toda esta nova indústria do cuidado em saúde poderá se verificar um aumento do número de pessoas que irão orbitar em torno da promoção da saúde de cada ser humano. Ou a perda de postos de trabalho aliada a exclusão de parte da população dos benefícios das inovações tecnológicas.

Hoje vemos uma rápida diminuição dos leitos hospitalares, especialmente nos locais próximos aos grandes centros tecnológicos de atenção. A lógica é de que não há volume de investimento suficiente para ampliar uma infraestrutura de atenção já dada como obsoleta. O trágico é que há um número incerto de pessoas que padecem de sofrimentos para os quais há tratamento e cura, enquanto profissionais da saúde tem dificuldade de encontrar empregos decentes.

 

Aberturas
A solução em parte é educar a sociedade, os profissionais da saúde e os gestores para que aceitem um novo cálculo de custos para a saúde pública. Se tomarmos como irreversível a tendência de abandonarmos a infraestrutura de alta complexidade que já está obsoleta e que ainda seria útil, precisaremos investir maciçamente na atenção básica.

O escândalo dos sofrimentos tratáveis precisa ser trazido à luz. Uma saúde para todos se tornará viável e depois realidade ou então a discrepância de acesso aos bens de civilização tornará a doença e o retrocesso uma ameaça para todas as camadas da sociedade.

A decisão será dramática. Mas será uma decisão política. O lugar dos humanos no cuidado em saúde será ampliado ou reduzido. Nossa geração terá de levantar este debate. Para encontrar um lugar para o SUS na nova indústria da saúde que está emergindo.

Especialmente por que toda a cadeia de custos da saúde é fundada e financiada com recursos públicos: Atenção básica, convênio com a rede privada e pública para remunerar bem a alta complexidade, renúncia fiscal para os gastos com convênios privados, renúncia fiscal para impostos previdenciários e trabalhistas das instituições filantrópicas, além de serem os governos os únicos agentes econômicos que estão investindo em ampliação dos serviços de atenção. Mesmo que seja para entregar sua gestão a fundações públicas de direito privado.

Referências

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