Meu Diabo pergunta: Por que fazemos o que fazemos?

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Aos que tem sua fé esclareço que meu texto não tem pretenções metafísicas nem teológicas. Só quero juntar na reflexão o que no mundo não se distingue: a vida íntima e a vida política na pólis, na comunidade e na família.

Esta noite eu tive um sonho. Sonhei com minha esposa, meu filho e o diabo. Mas a noite segue a trilha começada no dia. E sua escuridão pode realçar a tênue luz da interpretação. Portanto vamos à trilha que me levou ao sonho.

Ontem ocorreu uma audiência pública sobre a criação da Fundação de Saúde Municipal da Estratégia de Saúde da Família de Porto Alegre. Sindicato Médico, SINDISAÚDE, SINDISPREV, SERGS, FEESSERS, Conselho Municipal de Saúde e outras entidades se mobilizaram contra a Fundação. O prefeito (ausente) representado por seu secretário e os vereadores liberais, ajudados pela claque de algumas entidades de bairros controladas por setores do PMDB, bradaram a favor. A Câmara de vereadores estava lotada.

No início cheguei a acreditar na sinceridade dos argumentos dos gestores. O sistema atualmente é gerido por terceirização e o secretário da saúde anterior foi assassinado supostamente por desacertos nas partilhas das propinas dos contratos de prestação de serviços. Sou radicalmente contra e defendo a carreira de Estado nacional, com regime jurídico único e estatutário para os servidores do Sistema Único de Saúde como exige nossa carta constitucional. Mas ouvi os argumentos a favor da fundação com boa vontade.

No entanto, os interesses de exploração do mercado de saúde pública têm promovido uma verdadeira confusão. Para terem acesso a recursos públicos, sem passar por licitações, disseminam a idéia de que servidores públicos seriam incompetentes e a eficiência dependeria da flexibilização dos contratos de trabalho. É um princípio liberal que é bem acolhido em sociedades como a norte-americana. Não é o caso do Brasil.

A revolução tecnológica em curso na área da saúde tem gerado uma histeria no mercado de saúde complementar e na indústria de produção de técnicas terapêuticas, insumos de alta tecnologia e medicamentos. O que se desenvolve em um centro de pesquisa pode tornar obsoleto ou desnecessário o que está simultaneamente sendo pesquisado em outro. Busca-se uma medicação para melhorar a função cardiovascular e se descobre uma pílula capaz de reabilitar a função erétil em machos com mais de 70 anos.

Uma idéia amplamente aceita é de que uma vez que uma tecnologia passe a integrar o cenário social ele se modifica radicalmente. Sabemos da experiência japonesa de reverter o uso das armas de fogo para o da espada em nome da manutenção da estabilidade social. Mas só funcionou enquanto o Japão pode permanecer fechado para o resto do mundo. Logo que o fechamento se mostrou inviável a sociedade japonesa foi revolucionada a partir da elite dominante como podemos ver no filme “O Último Samurai”.

Em meio a esta efervescência tecnológica, a essa diversificação das possibilidades de se produzir mais e melhores condições de saúde pública vemos os gestores falando em misérias e dificuldades para dar aos cidadãos o acesso à atenção básica. E se batem a propor soluções para problemas que não existem, ao passo em que deixam de se ocupar dos que estão diante de seus olhos.

Enfim, a audiência pública foi muito tumultuada. Por pouco não se chegou ver confrontos mais violentos nas galerias. Mas ficou claro que a argumentação a favor das fundações e OSS é cínica e no mínimo esconde problemas com os servidores estatutários que devem ser levados ao judiciário. No mais, não passa de mais uma tentativa imoral e inconstitucional de privatização da saúde.

Então, depois de descrever a agitação de minha vigília, volto ao meu sonho. Numa noite um tanto febril, depois das fortes emoções, da audiência pública eu me vi em um mundo em crise. As imagens dos protestos no Egito serviram ao editor de sonhos do meu subconsciente.

Primeiro, eu e minha esposa consideramos seriamente a hipótese de comprarmos um carro militar como as Pick-up´s e SUVs americanas e um Fuzil Automático Leve – FAL e munição 7,65 para abandonar o “caos” em segurança com nosso pequeno e amado filho.

Cheguei a tocar o Fuzil do jeitinho que ele era nos anos em que servi o exército e tinha que vigiar os acampamentos do MST nas fazendas que circundavam o capo de treinamento nas coxilhas de Cruz Alta. Uma memória difícil para um jovem militante da Pastoral da Juventude e de esquerda no final do governo Sarnei em 1989.

Depois, ainda no sonho, eu decidi ficar e enfrentar o “caos”. Então o diabo, sempre presente, disse: – A pergunta que vocês devem responder não é sobre minhas razões. Para mim não há almas perdidas ou, digo de outra forma, todas me servem. Experimentem responder a esta pergunta: Porque vocês fazem o que fazem?

Então entre músicas e luzes eu comecei a recuar no tempo com aquela questão na cabeça. Porque fazemos o que fazemos? E o diabo não parava. Levava-me até as memórias sobre os campos de concentração do nazismo, sobre os Gulágs na União Soviética, sobre Hiroshima e Nagasaki… Luzes e música alta emoldurando uma epopéia de erros e tragédias.

Acordei com a cabeça latejando e com a pergunta ressoando na mente: Porque fazemos o que fazemos? No escuro, deitado na cama eu estendi o que o sonho trazia do inconsciente para a vivência da luta em defesa do SUS público e universal.

Porque nossa sociedade, em suas diversas tonalidades ideológicas insiste em boicotar os avanços que fizemos no rumo da distribuição justa dos bens de civilização? Porque depois de ter registrado o pacto de uma sociedade fraterna na constituinte de 1988 persiste este desejo de saquear e pilhar os recursos que deveriam financiar nossa paz social e dignidade coletiva?

Lembrei-me dos nossos diálogos na Rede Humaniza SUS. No esforço coletivo para fundamentar na teoria e na prática a ruptura com o histórico de privilégios e iniquidades que contaminam nossas relações sociais desde o genocídio cometido pelos colonizadores contra os índios e depois contra os escravos e desde sempre contra os pobres.

Parece que fazemos o que fazemos porque é o costume nesta terra de Vera Cruz. Aqui aceitamos que uns são predestinados ao padecimento enquanto outros ao gozo. Contra todas as evidências representadas por nossa vida, por nossa recusa ao sofrimento, pela solidariedade que nos une na dor, em laços de enriquecimento da vida, insistimos em boicotar nossas conquistas sociais.

Estou falando no plural, falando de nós porque me sinto implicado com o reacionarismo oportunista que mina o SUS. Também para responder a altura ao diabo. Afinal ele fez sua pergunta à espécie humana e não aos liberais ou neoliberais, aos “bons” ou “maus”.

Assim, respondo por todos nós. Esse meu diabo do sonho não era o satanás, anjo caído do cristianismo. Era o agente do caos mesmo. O observador que espera nossa queda em nome do surgimento de um devir não humano. Ele vem aos meus sonhos desde a infância mais tenra. E sua pergunta me intriga.

O que faz com que no melhor momento da história do país e da humanidade, em relação aos progressos na atenção a saúde, esteja-se a discutir retrocessos? Há menos de cento e cinqüenta anos reis e escravos se contorciam de dor de dente e morriam como moscas de gripes e pneumonias.

Agora a expectativa de vida cresce 5 horas a cada dia e o doce problema do momento nos países desenvolvidos é o que fazer nos 25 anos de vida que ganharam. Porque insistirmos em disseminar a dor sem sentido e privatizar e racionar a dignidade o prazer e a alegria?

Para mim seria mais sensato se estivéssemos a por em prática o que foi definido em 1988 e tem sido reafirmado a cada Conferência de Saúde. A carreira nacional dos trabalhadores do SUS; A organização das fontes de financiamento de acordo com a lei, eliminando o privilégio que umas instituições têm em detrimento de outras, etc. A implantação da PNH, suas diretrizes, dispositivos e modos de fazer é a resposta mais ágil a todas estas urgências.

A ampliação significativa dos gastos com saúde neste cenário de crescimento econômico é indispensável. As novas riquezas da potência econômica e cultural brasileira devem ser capitalizadas na forma de distribuição ampla dos bens básicos: saúde e educação. Nossa sociedade pode aliar sua riqueza antropológica e cultural ao desenvolvimento econômico.

É esta a minha resposta ao diabo. Iremos ao inferno se fizermos o que sempre fizemos. Se nos repetirmos, se fizermos o que julgarmos mais fácil e mais viável, deixar a uns poucos o lucro e aos demais a carência, provaremos que merecemos o caos.

Este é o velho e conhecido método de estratificação da Casa Grande e da Senzala. Sustentar o sistema de serviços públicos com a exploração da mão de obra carente de informação e de cidadania e excluir a maioria da overdose de vida que os saberes estão tecendo.

Não vai colar. Estamos vendo nascer um novo Brasil. Ele jamais será o mesmo. Se deste tempo de fartura não emergir a igualdade iremos pagar um alto preço num futuro não muito distante. No horizonte o caos do oriente médio ou a estabilidade e o equilíbrio social pelo qual lutamos ao longo de nossas existências.

Fazemos o que fazemos porque aceitamos a miséria existencial como contingência incontornável ou porque aceitamos o desafio de apostar na vida.

E nisso, apenas nisso, nos dividimos. Sabemos com quem está o diabo. E não haverá remissão. Em meu sonho não há redentor. Em nosso eventual e provável fracasso o diabo nos receberá a todos sem distinção.

Porto Alegre, 04 de Fevereiro de 2011.