A “Novidade” do Carnaval

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O carnaval é um daqueles raros momentos em que as diferenças podem aparentemente ser superadas e que os tabus são coletivamente quebrados. Podemos nos vestir de mulher e o magnata dos computadores pode mergulhar na multidão e se mesclar à chuva, suor e cerveja como nos ensina Caetano Veloso.

 

Momento que deixa os amantes ansiosos, afinal, os paradigmas da monogamia são ultrapassados. É um beija aqui, abraça ali com os riscos de num encontro ou outro poder acender uma paixão que revoluciona a vida precariamente estruturada em padrões que nem sabemos com clareza a origem e sentidos. 

 

Mas a coisa não é tão poética como gostaríamos pois o carnaval leva à rua parte dos nossos medos. Um dos fenômenos mais interessantes é a forma como se mercantilizaram os blocos de rua. A classe média criou a configuração do "condomínio móvel". São centenas de pessoas isoladas por cordões na forma de musculosos seguranças. O abada, verdadeira fortuna nesses dias, é o passaporte para ficar nesse condomínio fechado onde os filhos de médicos e juízes podem misturar energéticos, ritalina e vódka…com "moderação" é claro!!!

 

E a Globo nos empurra goela abaixo a estética das escolas de samba, verdadeiras óperas que romperam a clausura dos teatros desfilando na avenida. Celebridades razoavelmente despidas e siliconadas nos alimentam a fantasia enquanto a porta-bandeira, mais ricamente vestida que uma rainha no Brasil colônia, tem seu reinado por um dia.

 

Mas existem aqueles que detestam essa folia. Querem fugir para os retiros religiosos. Mas mal se deram conta que agora o carnaval é com Cristo. As gravadoras de música "gospel" já estão ensaiando suas marchinhas e batuques axé. Para vender, digo, evangelizar, vale a pena chegar ao coração das pessoas com estes ritmos antes tidos como do Diabo. E tudo muito bem feito e planejado com som  , tecnologia e rimas que já ultrapassam o primarismo de "luz" com "Jesus".  O profano faz assim um amálgama com o sagrado. Quando abrimos nossas bíblias, caem os confetes de amor e misericórdia.

 

Então vem a minha mente a música "Novidade" de Gilberto Gil. A gravação que mais aprecio é a do "Paralamas do Sucesso". Mas o que é a "Novidade"?

 A novidade veio dar à praia
Na qualidade rara de sereia
Metade o busto
De uma deusa Maia
Metade um grande
Rabo de baleia…

 

Fico imaginando que a "novidade" é encontrar na praia algo que deveria estar dentro d'água: um peixe, que é percebido de formas diferentes. De um lado existem aqueles que estariam vendo o peixe na sua forma concreta, de outro, aqueles que são capazes de metaforizar. O prosseguimento da música reforça essa impressão:

 

A novidade era o máximo
Do paradoxo
Estendido na areia
Alguns a desejar
Seus beijos de deusa
Outros a desejar
Seu rabo prá ceia..

 

A novidade então se apresenta como o máximo de um paradoxo. Reparem que um paradoxo, por definição, já é expressão de uma dicotomia que intenta se apresentar ao mesmo tempo. Mas aqui falamos dos limites, dos extremos. Existem aqueles que vêem o peixe e o imaginam como uma deusa que veio visitar esse mundo. Outros, querem a essência do peixe na única possibiliade que existiria para sua apreensão: como alimento!

 

Oh! Mundo tão desigual
Tudo é tão desigual
Ô Ô Ô Ô Ô Ô Ô!
Oh! De um lado esse carnaval
De outro a fome total
Ô Ô Ô Ô Ô Ô Ô Ô!…

 

Para mim Gil resume poeticamente  o paradoxo do carnaval. Queremos a festa. Ela sintetiza na fantasia as belezas e ultrapassa as possibilidades desse mundo. Traz para a Terra os deuses e nos torna muito poarecido com eles. Voamos, nos transformamos..ficamos invisíveis, viramos príncipes, rainhas, trocamos de sexo! Mas em meio a isso tudo habita um mal estar que reverbera o tempo todo no sonho insistindo em nos trazer de volta para a realidade:

 

E a novidade que seria um sonho
O milagre risonho da sereia
Virava um pesadelo tão medonho
Ali naquela praia
Ali na areia…

A novidade era a guerra
Entre o feliz poeta
E o esfomeado
Estraçalhando
Uma sereia bonita
Despedaçando o sonho
Prá cada lado….

 

De que adianta então mostrar na avenida a beleza da prata e do ouro se estamos vivendo num mundo que nos afronta com tanta dor, miséria  e sofrimento? Como manter a capacidade de ver poesia e lirismo frente ao fato de que nesse momento mães estão clamando a Deus por seus filhos mortos e desaparecidos nas chacinas de cada dia?  Como aceitar a afronta de que grupos  com medo de se misturar ao povo tomem as ruas para fazer uma festinha particular em meio ao público? Enquanto vemos impressionados o carro alegórico explodindo em luxo e riqueza, seres humanos moram e se alimentam do lixo. Mesmo no auge da folia, a violência e o medo nos diz, ora baixinho, ora gritando:

Oh! Mundo tão desigual
Tudo é tão desigual
Ô Ô Ô Ô Ô Ô Ô!
Oh! De um lado esse carnaval
De outro a fome total
Ô Ô Ô Ô Ô Ô Ô!..

 Por favor, não me tomem como um "estraga prazeres". Também não pensem que não gosto de folia. Só não quero que em meio ao lenitivo da música, do batuque e da dança nos esqueçamos que nesse exato momento existe muita gente que não tem motivo algum para estar feliz. É em meio a esta dor que o carnaval também se faz, brotando como uma flor que se alimenta de sangue, alegria, sofrimento, amor, ódio, prazer e violência. Vamos então colher essa flor! Admiremos sua beleza! Vamos sentir a intensidade do seu perfume mas nos lembremos que o carnaval só poderá ser plenamente comemorado no dia em que todos puderem ver no peixe o busto de uma deusa maia ou qualquer outra coisa que não lembre imediatamente as dores que só a fome provoca!!!