Olhar para a infância de outro modo é preciso!

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 As cenas que assistimos ou são descritas no cotidiano da clínica com crianças hoje falam de uma atitude ímpar, um ethos da vida adulta a ser analisado com toda a atenção, para que algo se ilumine neste deserto de sentido que se tornou ser criança.
 
 Antonio é encaminhado para avaliação psicológica por recusar-se a fazer lições! Do alto de seus seis anos de idade, ameaça a professora. Os coleguinhas o imitam neste rompante de pequeno rebelde sem causa. Pais e mestres se descabelam ao temer um futuro "transtorno de oposição".
 
A primeira passagem por psicólogo resulta na impotência da profissional em "avaliá-lo", pois recusou-se a submeter-se aos famigerados testes psicológicos "estruturados". Mas seus desenhos foram objeto de um ‘relatório’ que indicou, por meio de um corta e cola dos manuais, tratar-se de criança sem "tolerância `a frustração". Pergunto-me humildemente se existe alguma criança de cinco anos com essa tal tolerância e como podemos medir objetivamente algo tão singular. Como se não bastasse, as conclusões desastrosas são passadas aos pais do guri.
 
Que ethos é esse?
 
Nos anos setenta/ oitenta costumávamos nos referir aos efeitos da inserção das crianças nas famílias, com seus consequentes conflitos, como "distúrbios reativos de conduta". Notem que o acento era colocado na RELAÇÃO da criança com o mundo que a cercava. Havia também os "distúrbios evolutivos de conduta". E a coisa ficava por aí, sem recair sobre os sujeitos qualquer rotulação identitária. As relações eram o foco do trabalho terapêutico e a infância era poupada de figurar nas intermináveis classificações de doenças psiquiátricas. Salvo engano, apenas algumas dimensões mais graves de psicoses, como o autismo, constavam do DSM.
E a vida se desdobrava em seu devir…
 
Pois bem, o que vemos hoje? Que experiência de infância vivem as crianças no mundo contemporâneo?
"Crianças digitais", com subjetivações marcadas pela vivacidade trazida pelo contato precoce com o mundo dos computadores e das redes de toda espécie, em sua grande maioria são inseridas em "escolas analógicas". Se não levarmos em conta essa nova realidade nas análises do que é ser criança hoje, cairemos nos enquadramentos apressados das tristes categorias e supostos transtornos como TDAH, transtornos opositores- desafiadores e outros não menos danosos `a subjetividade.
 
Pois é nesta imersão no espírito de nosso tempo que deve se dar a clínica, seja com crianças ou adultos. Outro dia soube de intervenções psicoterápicas  "fora do tempo e do lugar" que atribuíam ao usuário de redes sociais a condição de sujeitos que "fogem `as relações"! Nada mais distante da realidade do que afirmar algo desta espécie…Nada mais revelador de um ensaio sobre a cegueira daqueles que se deliciam com modos de ser universais e universalizantes dos homens…
 
Iza Sardenberg