Sobre drogas e outros medos

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Como nos apontou Foucault, coube ao cristianismo colocar as relações prazerosas sob o signo do mal. Enquanto na Grécia Antiga o uso dos prazeres era tomado como ponto de reflexão sobre si, moral e ética, no cristianismo o prazer se tornou ponto de interdição. Foi assim que as relações com a dieta, com substâncias que alteravam a percepção e a consciência e com o sexo deixaram de ser meios para que cada cidadão se entendesse como um ser na polis, para se tornar signo do pecado, da perdição da alma, enfim, a associação do prazer e do mal. Ao invés de se trabalharem regras facultativas, a prudência, o cuidado de si e a temperança, foram criados códigos rígidos, regimes proibitivos e regras coercitivas. Não mais se enaltece o modo como é feito o uso dos prazeres e sim a capacidade de se manter abstinente e casto. Não mais se coloca o prazer num campo de práticas em que se reflete qual o melhor uso para quem o faz e para a cidade em que se vive e sim numa interioridade vigilante e pecadora. Sem percorrer meandros de séculos de história, mas a associação deste diagrama de poder com práticas de governo e suas aproximações com a instituição asilares definiu proposições sinistras entre o poder cristão, o poder psiquiátrico e o poder jurídico quando o tema do prazer  incide sobre os corpos daqueles que usam drogas. A associação imediata entre drogas-delinquente, drogas-pecador, drogas-doente antes de serem proposições ideológicas, são tecnologias de poder que definem um enquadre polarizado: criminoso ou doente?, legalizar ou proibir?, lícito ou ilícito?. Daí insistem em renascer as Comunidades Terapêuticas, o aumento de prisões por uso de drogas e toda estas práticas de seqüestros instituídas. Nos parece que, tanto no campo jurídico quanto no campo da saúde, a proposta da regulamentação das drogas e a proposta da redução de danos respectivamente criam uma terceira via que foge e escapa as polarizações que tendem a paralisar um campo dinâmico e heterogêneo. Em primeiro lugar porque ambas as propostas partem da realidade de que apenas uma minoria das pessoas que tiveram ou tem algum tipo de relação com as drogas desenvolvem problemas de apego excessivo as drogas. A grande maioria vai muito bem, obrigado! Em segundo lugar, que ambas compreendem que tanto a minoria que precisa de ajuda e a maioria que vai bem obrigado têm diferentes modos de se relacionar com as drogas! Não é possível enquadrá-los num único grande grupo e contrapô-los a um segundo grande grupo: usuários X abstinentes; ou criminosos X inocentes. Neste sentido, tanto a redução de danos quanta a regulamentação são propostas que entendem que a abstinência e a proibição tem seu devido lugar: o de serem utilizadas em casos específicos e bem aplicados e não como regras gerais e universais! Na saúde, especificamente, a redução de danos é um modos operandis que faz valer a equidade, a universalidade e a participação cidadã. Aqui, ser democrático implica em adequar as ofertas de saúde as diversidades de demandas e não ao contrário, em que sobre o signo do mal e da doença todos que usam drogas são igualmente internáveis e incapazes de responder pelos seus atos. Neste caso as diferenças estabelecidas não se elevam a uma problemática ética, mas se reduzem as divisórias de alas e enfermarias segundo seus diagnósticos!