Trecho final de artigo sobre discursividades preventivas dominantes.

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Acabo de concluir artigo sobre território, crack e juventudes nas campanhas de prevenção. Abaixo, disponibilizo os momentos finais do artigo, que deve ser publicado em breve, em uma publicação sobre juventudes.

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De imediato, penso em dois desdobramentos nefastos desta discursividade preventiva dominante, expressa em territórios do medo habitados por zumbis usuários de crack. Um primeiro desdobramento está relacionado com a afirmação de que as ruas só são seguras durante o dia, e que durante a noite é preciso permanecer em casa; um segundo diz respeito ao usuário ou usuária de crack como zumbi, monstro perigoso, criatura das sombras. Pois estes dois desdobramentos, em que pese suas diferenças, são bastante parecidos.

Sobre o primeiro: é preciso ter claro que o ato de afirmar o perigo das ruas à noite constitui-se em recomendação de que se evite sair às ruas, à noite. Pode até ser que isto seja efetivo para proteger às pessoas que seguem tais recomendações, mas contribui para tornar as noites mais vazias, portanto mais perigosas (especialmente para as pessoas que ignoram tais recomendações). Deste modo, o discurso preventivo contribui para a efetivação da profecia que ele mesmo realiza, mostrando que não se trata de uma profecia, mas de uma prática social que participa da construção daquilo que julga profetizar.

O segundo: posicionar usuários e usuárias de crack como monstros perigosos, como zumbis, talvez – e apenas talvez – possa ser eficiente como estratégia para diminuir o desejo das pessoas em experimentar o crack. No entanto, é preciso perguntar: quais os efeitos da veiculação deste tipo de representação social de usuárias e usuários de crack, sobre os próprios usuários e usuárias? Recordo de um evento do Movimento da Luta Antimanicomial realizado na bela cidade de São Lourenço, no Rio Grande do Sul. Durante um dos debates, um usuário do CAPSad local pediu a palavra para dizer uma frase que jamais saiu da minha memória: “Quando descobrem que a gente usa crack, nossa vida acaba”. Chamou minha atenção que ele não dissesse que o crack acaba com a vida, mas sim a divulgação da condição de usuário ou usuária de crack. O que destrói a vida não seria o crack, mas o estigma, a marca do craqueiro, do pedreiro, do chupa-latas, do zumbi, do morto-vivo. Ou da ratazana, para ficar com a metáfora utilizada por Andrea Domânico . Recordo aqui da fértil categoria de “assassínio indireto”, cunhada por Foucault:

É claro, por tirar a vida não entendo simplesmente o assassínio direto, mas também tudo o que pode ser assassínio indireto: o fato de expor à morte, de multiplicar para alguns o risco de morte ou, pura e simplesmente, a morte política, a expulsão, a rejeição, etc. (FOUCAULT 2002b, p. 306)

“O problema dos estereótipos não é que eles sejam mentiras, mas sim que são incompletos”, como diz Chimamanda Adichie, em conferência sobre os perigos da história única. As campanhas de prevenção também têm nos contado uma história única sobre usuários e usuárias de crack, diminuindo o repertório simbólico de pessoas e grupos sociais. Chimamanda conta que ouvia de mãe que a família de um de seus empregados era extremamente pobre; no dia em que ela pode visitar a casa deste empregado, ela ficou muito impressionada, pois uma daquelas pessoas sabia fazer lindos cestos. Mas, como poderia se eram apenas pobres? Naquele momento, ainda criança, esta linda escritora nigeriana começou a desconfiar das histórias únicas, abrindo-se à potência de cada ser humano. Pois cabe a cada um de nós, da mesma maneira, desconfiar das histórias únicas que nos tem sido contadas acerca de usuários e usuárias de crack. Eles estão para muito além de suas vulnerabilidades.