Levantadas do chão

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Como então? Desgarrados da terra?
Como assim? Levantados do chão?
Ou na planta dos pés uma terra
Como água na palma da mão?
(Chico Buarque/Milton Nascimento)

Percurso oeste da cidade. Sempre perco a noção do caminho. Peço à amiga Rejane: não aponte, verbalize: direita ou esquerda! caso contrário, desorientada que sou, nos perderemos em uma das curvas.
Na verdade, estávamos inseguras. Daria certo?
Água no porta-malas, mentes fervilhando. Dividimo-nos em dois carros. Uma equipe seguiria com as crianças e outra, a nossa, se reuniria com as mulheres.
Algumas já nos esperavam e outras rapidamente vieram se juntar a nós carregando as cadeiras. O sol das quinze horas atravessava as folhas do cajueiro queimando a pele que parecia derreter, enquanto os olhos anuviados pela claridade procuravam distinguir as mulheres com quem havíamos conversado anteriormente: as líderes do movimento de luta nos bairros daquela ocupação. Sim! Ocupação. Em suas falas, elas faziam questão de enfatizar: aqui não é favela; isso aqui é uma ocupação.
Admirada com o barrigão de uma delas, perguntei: é pra quando? "Vixe, pra qualquer momento. Você é enfermeira?" Respondi que sim. E ela, tentando me assustar (e conseguindo): então pode ser até agora!
Ali estávamos para iniciarmos a oficina  de saúde – mulheres em alerta do projeto de extensão da UFRN: projeto germinal.
Entreolhávamo-nos preocupadas pensando que não saberíamos por onde começar; não percebíamos que já havíamos começado…

Intencionando registrar os detalhes daquela conversa, peguei a caneta da bolsa e o caderninho colorido, mas logo desisti de anotar: diante de mim, aquela menininha que ficou no local por ser ainda muito pequena, me olhava: peixinho. Desenhei o suposto peixe. Ela não se contentava: casinha. Rabisquei a casinha. Antes de um próximo pedido, percebi que não conseguiria satisfazê-la com meus rabiscos; seus dedinhos já seguravam a caneta. Em poucos segundos, lá se foram a passear entre os braços dela: caneta, caderninho, anotações…
Já não tinha anotações para fazer. Fiquei a olhar nos olhos, a escutar as vozes, a observar os gestos, os sorrisos.
Há um ano e nove meses, muitas delas chegaram do interior, de cidades vizinhas, de outros bairros de Natal. Saíram das casas de familiares onde já não podiam permanecer ou foram despejadas pelo não pagamento de aluguéis ou fugiam da violência dos companheiros. Capinaram mato, ergueram barracos, ocuparam seus lotes, fincaram ali suas esperanças. Cada uma falou o que significava estar no assentamento; de onde vieram,  dos enfrentamentos com a polícia, dos primeiros barracos erguidos, das latas d’água carregadas, da elaboração do regimento local, do fato de nunca poderem se ausentar do lugar, dos medos que as crianças sentem nas noites de chuva, da solidariedade, dos sonhos.

Sonhos: água e energia “legalizada”, uma casa, creche para os filhos, posto de saúde, transporte.
Pudemos ver que estes sonhos se misturavam àquele chão, lambuzavam-se na terra que fazia florescer os jardins que cultivaram cercados pelas estacas; multiplicavam-se junto ao verde imenso dourado pelo sol que caía na tarde quente…Um cenário que  impulsionava os sonhos de um mundo diferente…e  nossos olhos, dali do alto, tentavam alcançá-los.
Uma viatura policial passa lentamente mudando o rumo da prosa: “parou lá no barraco de fulano? Não, não foi nada não. Devem estar procurando alguém que veio se esconder por aqui…” E voltávamos a conversar.
Diante de tantas histórias sobre o assentamento e de perguntas que puxavam outras e outras histórias singulares, propomos montar a tenda do conto: agendada para o próximo encontro.

Mais tarde,um morador do lugar se aproxima. À tiracolo, um rádio tocando uma música em volume máximo. As mulheres se agitam, abordam o cavalheiro e tentam fazê-lo baixar o volume: “companheiro, tá atrapalhando aqui!” Enquanto isso, alguém trouxera uma garrafa pet cheinha de água bem gelada que ia passando de mão em mão, de boca em boca, saciando a teimosa sede e aliviando o calorão.
Lá embaixo, a outra equipe já retornava com as crianças. Hora de oportunizar que todas expressassem suas opiniões sobre o encontro; hora de encerrar a conversa daquele dia.

Como faremos para avisar as que não vieram? Perguntamos. “Fácil: Soltamos um fogo (de artifício); em instantes, estarão todas aqui debaixo do cajueiro; é assim que nos comunicamos.”
Agradecemos a acolhida, mas antes, passamos em um dos barracos. Alguém queria mostrar o enxoval do bebê que está para nascer.
Por ali, tudo brotava o tempo todo; por todos os cantos havia algo novo surgindo. Nas barrigas, no chão, nos jeitos de falar e de rir, nos modos de compartilhar.
Saímos com a sensação de carregar aquelas vozes; mais histórias, outros livros de um não-lugar; já  não cabia nos perguntarmos sobre o certo e o errado; uma outra leitura que começávamos a soletrar estava nascendo, balbuciando, germinando, levantando dentro da gente.

…Para além da curva da estrada
Talvez haja um poço, e talvez um castelo,
E talvez apenas a continuação da estrada. (Alberto Caeiro)

 

Quarta-feira ensolarada, 28 de Março de 2012

Jacque e Reje