Ciência e solidão nas fronteiras do SUS

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A dinâmica social materializada pela Renascença, mais que o desenvolvimento do ‘pensar científico e filosófico’, mergulhou o ser humano em um contínuo processo de individualização de si e reclusão social. A privatização da subjetividade tornou-se uma meta. O primeiro cárcere a nos recluir como refúgio da vida pública, núcleo ao qual recorremos para uma constituição identitária, foi a família. A seguir, impulsionados pelos valores capitalistas cada vez mais presentes, passamos a constituir nossa identidade a partir do trabalho, em uma tensão constante com a família e a capacidade que possuíamos para mantê-la ou provê-la. Aos poucos um processo de polarização desse binômio deu maior envergadura à categoria ‘trabalho’, estabelecendo nesta extremidade referências para uma definição ‘segura’ das qualificações desejáveis em uma pessoa. As determinações e condicionamentos sociais desta categoria acabaram por flexibilizar, fluidificar, liquefazer as relações em seu interior de tal maneira que elementos que lhe eram caros, como lealdade, cumplicidade, compartilhamento, amizade, perderam parte de seu significado, uma vez que eram demandantes e dependentes de tempo para que se solidificassem, algo cada vez menos presente em razão da fugacidade das relações ali materializadas. Intrinsecamente a isso, a ostensiva especialização e ‘tecnologização’ dos modos de produção conduziam o trabalhador a não se reconhecer ou não identificar sua posição e importância dentro do sistema, dificultando uma parametrização de qualificativos que pudessem lhe orientar ao conhecimento de sua condição como ser humano, em outras palavras, acabamos por perder parte significativa de nossa referência identitária no trabalho. O caminho de volta para a família há muito estava comprometido pela dinâmica social capitalista que empurrava os anseios e desejos particulares para o exterior deste núcleo, apresentando-nos a possibilidade de independência e individualização como um bem a se aspirar e se conquistar a partir do fortalecimento do poder de consumo. A liquidez das relações no trabalho transmigrou para o reduto familiar, maculando, também, este espaço de constituição da pessoa, que se via cada vez mais solitária em busca de sua individualidade. A constituição do indivíduo pleno mostrou ser um mito da modernidade: ninguém é totalmente independente da vida pública e poucos são aqueles capazes de se individualizar de forma significativa. O equívoco acaba por gerar tensões que oneram os diversos sujeitos em sua busca infrutífera e os lança em um redemoinho de sentimentos difíceis de compartilhar pela própria dinâmica de vida privada assumida: o outro é ineficaz na cumplicidade e compreensão. As relações se esfacelam não havendo a reciprocidade da entrega e da empatia. Na relação verdadeira um se perde dentro do outro, e nada perde de si mesmo, pois que recebe o outro em complemento, e o terceiro que surge, a síntese entre os corpos que se enlaçam, é a encarnação de algo maior, que existe enquanto tal apenas na relação e que engrandece o outro na separação. Fecha-se aí o vínculo amoroso que produz a humanidade e aplaca o sentimento de solidão, a sensação de falta do absoluto e a constante busca que erige a angústia e a melancolia. Mas este vínculo não é definitivo, pois que isso sinalizaria o fim da possibilidade de relações: a melancolia é conditio sine qua non que nos move adiante na existência e nos torna humanos, a unidade absoluta e eterna é a negação da própria condição de humanidade. A impossibilidade da relação extremaliza a melancolia ao ponto da estagnação. A separação produz a falta e o desejo da relação com o outro, mas, para que ocorra, a união precisa se dar e ser uma possibilidade na equação considerada. A privatização da subjetividade compromete a relação, o corpo se torna ensimesmado, fecha-se sobre si, não sendo, por isso, Dom, Bem, mas instrumento de satisfação, que não se entrega e, assim, usa e é usado pelo outro, mantendo a rigidez de seus limites, as paredes de sua solidão. A Ciência moderna é vítima e verdugo dessa realidade. Suas proposições de neutralidade, impessoalidade, universalidade e objetividade são uma iatrogenia renascentista que criou as condições de sua possibilidade, mas que estabeleceu os limites de sua abrangência e condicionou o pensamento ocidental a partir do séc. XVI. Não seria possível o desenvolvimento científico àquela época sem uma oposição entre natureza e cultura, uma individualização do sujeito, seu distanciamento das formas coletivas e míticas de pensar, uma valorização dos elementos da experiência empírica e posicionamento do homem (e, por consequência, da Terra e da matéria) no centro do universo e da criação. Essa visão acabou reduzindo a compreensão de Ciência na modernidade como sendo o acúmulo de observações e generalizações indutivas a partir de proposições de observação singulares, aceitando que das generalizações derivam-se deduções que buscam prever ou explicar um fenômeno, de forma objetiva, neutra e pontual. Assim, desde Platão, a história da Ciência e a história da razão compartilham um mesmo espaço na história do pensamento ocidental que pressupõe um determinismo universal e o controle da natureza pelo homem (inclusa aí a própria natureza humana), a fim de prever e controlar o futuro a partir da compreensão do passado e do presente, por meio da identificação de regularidades e leis que evidenciariam uma ordem inteligível da existência. Essa concepção, em maior ou menor grau, ainda se encontra presente nos dias atuais e foi sobre ela que se formularam os princípios que deram origem às Ciências Biológicas e, posteriormente, à Medicina Científica, legitimando-a como ferramenta de controle social e reprodução da força de trabalho. Desde então, a relação médico-paciente não tem sido, em si, uma relação verdadeira, não há renúncia do ‘eu-limite’, não se processa a síntese entre corpos e sim uma unidirecionalidade instrumental em que o médico (e, por extensão, outros profissionais de Saúde) absorve o outro e de si nada doa, não há acolhimento, não há cumplicidade: expropria-se o outro de seu corpo. O indivíduo humano tem, assim, seu último refúgio contra o mundo devassado e maculado, justamente, em um momento em que ele mais precisa do outro para compartilhar sua solidão e sofrimento na tentativa de se reintegrar. A última morada de sua individualidade e autonomia é apossada pelo profissional, que lhe dita normas para lidar e conduzir o que possui de mais seu: o corpo. Urge, assim, refletir como o profissional de Saúde tem percebido a pessoa e sua condição humana frente ao binômio saúde-doença e avaliar o perfil de sua formação, bem como a concepção de Ciência imanente a ela. Uma reflexão compartilhada, coletiva, comprometida com a mudança e avessa ao protecionismo/corporativismo.