Indivíduo e Humanização

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Não! A oposição entre ciência e arte é uma ilusão! Uma se alimenta da outra para compor a complexidade contraditória do que chamamos de "verdade". Lembremos Drummond: 

 

VERDADE


A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.
 
Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.
 
Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
diferentes uma da outra.
 
Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia.

 

E não fazemos assim quase sempre? Tentemos nos libertar do capricho e superar nossas ilsuões. Quando se fala dos indivíduos e de suas relações com o coletivo, ficamos meio que cindidos pelo dicotômico que num momento sufoca o indivíduo na sociedade e, no outro, afirma uma indiviudalidade restrita a si mesma. Nos ensina Cecília Meireles no seu cantico XXIV, o seguinte:

Não digas. Este que me deu corpo é meu Pai.
Esta que me deu corpo é minha Mãe.
Muito mais teu Pai e tua Mãe são os que te fizeram
Em espírito.
E esses foram sem número.
Sem nome.
De todos os tempos.
Deixaram o rastro pelos caminhos de hoje.
Todos os que já viveram.
E andam fazendo te dia a dia
Os de hoje, os de amanhã.
E os homens, e as coisas todas silenciosas.
A tua extensão prolonga se em todos os sentidos.
O teu mundo não tem pólos.
E tu és o próprio mundo.

 

Belo poema! O indivíduo é mostrado na sua faceta mais complexa. Cada um de nós como intrincado conjunto de inscrições da história, de todos aqueles que viveram antes de nós…na verdade somos filhos do tempo! Mas não só do tempo passado mas também do presente pois outros tantos homens vivos vão nos deixando marcas, de tal forma que cada um de nós traz em seu ser o mundo, ao mesmo tempo em que vamos deixando o mundo como marca nos outros.



Ao descrevermos e analisarmos a biografia de um indivíduo concreto – assumindo-se o estudo de suas (auto)representações como algo inerente à sua individualidade e não como algo apartado dela – é que podemos, efetivamente, qualificar a conduta do indivíduo, inserido em seu drama cotidiano podendo, ao mesmo tempo, configurar este drama, como processo, constituído tanto pelo indivíduo quanto pela história social. Neste sentido, é fundamental resgatar o indivíduo como importante agente qualificador/significador de suas ações inseridas no drama – portanto dotadas de certo nível de intencionalidade –  com o papel de intérprete da ação deste mesmo indivíduo, realizado por aquele que investiga as situações concretas, onde o indivíduo está inserido. Esta atitude, que busca incansavelmente o indivíduo concreto pode, quem sabe, desvendar um mistério há muito já, em parte, conhecido pela arte. Ouçamos Shakespeare no seu “O Mercador de Veneza”:

 

" Os judeus não têm olhos? Os judeus não têm mãos, órgãos, dimensões, sentidos, inclinações, paixões? Não ingerem os mesmos alimentos, não se ferem com as mesmas armas, não estão sujeitos às mesmas doenças, não se curam com os mesmos remédios, não se aquecem e refrescam com o mesmo verão e o mesmo inverno que aquecem e refrescam os cristãos? Se nos espetardes, não sangramos? Se nos fizerdes cócegas, não rimos? Se nos derdes veneno, não morremos? E se nos ofenderdes, não devemos vingar-nos? Se em tudo o mais somos iguais a vós, teremos de ser iguais também a esse respeito. Se um judeu ofende a um cristão, qual é a humildade deste? Vingança. Se um cristão ofender a um judeu, qual deve ser a paciência deste, de acordo com o exemplo do cristão? Ora, vingança. Hei de por em prática a maldade que me ensinastes, sendo de censurar se eu não fizer melhor do que a encomenda."

Somos o que somos porque fomos transformados no que somos. No entanto, o que somos  não é um reflexo passivo daquilo que nos fizeram pois, diante das águas,  Narciso toca a superfície e refaz sua face antes construída pelos outros e, agora, reconfigurada por ele. Mas, após Narciso tocar a superfície, somos também aquilo que mudamos do que vemos e o que acreditamos ter visto do que mudamos.  Sob a égide da nova efígie, semelhança mais ou menos bizarra de nós mesmos,  nos transformamos em anjos e demônios habitando o mesmo corpo. Verdade e ilusão convivem no mais promíscuo amálgama a tal ponto que, quando pensamos ter decomposto os elementos daquilo que somos, aquilo que somos afirma solene e irônico o que não somos e/ou o que ainda poderemos ser! Cada indivíduo, enquanto sujeito de desejo e de necessidade, transmuta-se a cada dia ao mesmo tempo em que luta (in)conscientemente para mudar e permanecer o mesmo. Perder a dimensão desta dinamicidade é enclausurar o indivíduo na abstração que insiste em cindir a ação do sujeito que age. Recompor esse nexo é pagar um tributo à verdade ou, sendo menos retórico, voltar os olhos a um objetivo mais simples: ver o que as pessoas estão fazendo!

 

E ao ver o que as pessoas fazem, percebemos que existem inúmeras formas de agir e contextualizar dramas e cenários de situações aparentemente similares. É no contraste desse agir de indivíduos que percebemos o coletivo como sociedade de indivíduos em perpétuo dinamismo. É o interagir dessas ações que afirma um agir humanizado em contraste com um agir desumano. É o sorriso em contraste com o contorcer do rosto vulnerável pela dor; é o cheiro de limpeza em contraste com fezes e urina secando lentamente na interminável fila do pronto socorro; é participar alegremente do controle sobre o que fazemos em contraste com o sentir-se um animal de carga no hospital obedecendo ao comando das rédeas com os estribos lacerando a carne; é perceber olhares diretos e falas compreendidas e compreensivas em contraste com o discurso hermético e evasivo de profissionais que transformam seres humanos em penitentes perdidos pelos corredores dos serviços; é constatar que o mesmo olhar que cuida controla e interfere diretamente no gesto de cuidador em contraste com uma horda de abelhas tarefeiras exauridas por um trabalho sem alma que vai tangendo a morte pensando em salvar vidas. 

 

Podemos ficar aqui indefinidamente nessas relações contrastantes, do quanto imgens no espelho podem ser distorcidas ou inspirar a necessidade de novas visões que se transformam em realidade. Mas basta por enquanto concordar com a célebre frase de Nelson Rodrigues: "cada pessoa é mais importante que a Via Lactea!"