Quantas humanidades? O que pode o corpo?

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África oriental. Terras etíopes. As terras vulcânicas do vale do Rift, rachadura separando o corno somali do corpo continental, e sua “palete de pigmentos, ocre vermelho, caulim branco, verde revestido, amarelo luminoso ou cinzento de cinzas”.
Terras da irrupção de hominídeos, do homo habilis, terra onde a humanidade é experimentada e reinventada há três milhões de anos.
Ao longo do vale do Rio Omo, cujas terras contêm vários restos paleontológicos dessa remota humanidade, vivem os Karo, os Mursi, os Hamer, os Bume, os Konso, os Omorate, entre outros grupos humanos.
Recebi por alguma lista de e-mail (como, portanto, é bem possível que já tenha recebido uma boa parte dos que lerão este post) uma seqüência de fotos produzidas por Hans Sylvester durante seus seis anos de convívio com os povos das chamadas “Tribos do Omo”, registrando sua singular “arte corporal”.

No texto que circula junto com as fotos, é dito:
A força da sua arte se resume em três palavras: os dedos, a velocidade e a liberdade.
Desenham com as mãos abertas, com a extremidade das unhas, às vezes, com uma extremidade de madeiras ou um caule esmagado. Gestos vivos, rápidos, espontâneos, para além da infância, este movimento essencial que procuram os grandes mestres contemporâneos, quando aprenderam muito e tentam esquecê-lo todo.
Apenas o desejo de decorar-se, de seduzir, de ser bonito, um jogo e um prazer permanente. É-lhes suficiente que mergulhe os dedos na argila e, em dois minutos, sobre o peito, os seios, o púbis, as pernas, não nasce menos do que um Miró, um Picasso, um Pollock, um Tàpies, um Klee…

Desse texto, eu fico com as “três palavras” do princípio, que trazem a visão dos movimentos dos corpos, dos dedos, dos dedos nos corpos. A erupção dos pigmentos vulcânicos à flor da pele. A autocriação do homo húmus.
Mas afasto-me das inclinações etnocêntricas contidas nas comparações com a arte ocidental moderna. Se há validade nessas aproximações é porque, de fato, em muitos momentos, a arte ocidental moderna alcançou as intensidades estéticas destas desconcertantes expressões de “arte corporal”, na falta de um modo melhor de nomeá-“las”, na medida em que nos falta um modo melhor de compreender que lugar é esse ocupado pela pintura corporal na “comunicação” destes povos.
E é intuir esse lugar, intuir a experiência desse lugar, o que efetivamente me captura e me impressiona nestas fotos.
Esse modo de “comunicar”, de “produzir comum”. Com a terra, com o mundo. Modo de se “mediatizar”, tornando-se meio de expressão do mundo, deixando-se marcar pelos seus fluxos minerais, vegetais, animais…
Não posso ver ali “apenas o desejo de decorar-se, de seduzir, de ser bonito, um jogo e um prazer permanente.”
Vejo ali, antes, o desejo. Apenas. Intransitivo. Vibrante expressão de uma potência, afirmando uma humanidade possível.
Ainda uma outra humanidade é sempre possível…

“O fato é que ninguém determinou, até agora, o que pode o corpo…” (Spinoza, Ética, Livro 3, proposição 2, escólio)