O ESCAMBO DAS CHUVAS – uma lição de democracia entre os saberes

11 votos

Por Ray Lima (Poeta e membro fundador do Escambo )

Há 17 anos nascia o I Escambo (teatral) de Rua, hoje denominado Escambo Popular Livre de Rua, na cidade de Janduís-RN, em maio de 1991. Daquele encontro de solidariedade que tinha, por um lado, o povo sofrendo os efeitos da seca e, por outro, a inquietação dos artistas, especialmente dos grupos de teatro do estado, acossados por lutarem em defesa da cultura e denunciar a ausência total de políticas públicas neste campo. É interessante observar que os mesmos políticos perseguidores da época, atualmente fazem oposição ao Lula com discursos absolutamente em favor da democracia, da liberdade de expressão e dos direitos de cidadania, apresentando-se como senhores da ética e guardiões das boas práticas políticas. Em sua trajetória de lutas, O MOVIMENTO ESCAMBO produziu documentos, ações concretas, construiu metodologias e processos pedagógicos de intervenção nas realidades culturais e sociais, decididamente em cidades de pequeno e médio porte, mais fortemente no Rio Grande do Norte e Ceará. Isto não diminui a importância de sua influência nas práticas de muitos artistas e grupos de outros estados e cidades de grande porte como Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Brasília, Campinas-SP, Natal-RN, Fortaleza, Açailândia e Imperatriz-MA, etc. Também a presença interativa e recorrente de mestres populares da cultura, como Gilberto Calungueiro, Antonio da Ladeira, Chico Daniel; de pesquisadores da educação e da cultura popular como Oswaldo Barroso, Enrique Dídimo, Josy e Vera Dantas; de nomes nacionais como Amir Hadad, do Tá na Rua-RJ; Júnio Santos-Cervantes e do poeta brasileiro-argentino Zé Cordeiro, dão ao Escambo a chancela que merece para se afirmar como um dos movimentos sócio-culturais brasileiros mais belos, engajados e fascinantes da atualidade. Poucos movimentos populares, mormente no terreno da cultura, duraram tanto. São quase duas décadas. Existe nele um grau e uma capacidade de renovação incrível. Seja renovação dos conhecimentos, sejam renovação e aperfeiçoamento das práticas artísticas. A cada congresso realizado sentimos que os grupos renovam suas linguagens, seus atores, suas práticas. O fato de ser um encontro de celebração e intercâmbio intenso, os escambistas aprendem, se deixam aprender e apreendem o outro, levando para seus lugares de origem a cachola repleta de saberes e práticas renovadas e enriquecidas. Esta riqueza de aprendizagens em alta proporção, qualidade e velocidade faz da pedagogia do Escambo, um mundo de possibilidades, um centro móvel e dinâmico de construção coletiva de saberes diversos e carregados de significados. Outro aspecto a se observar é a intergeracionalidade dos congressos. Podemos encontrar um mestre popular como Gilberto Calungueiro sentado num banco da praça entre jovens e adolescentes conversando sobre teatro de bonecos, sobre a arte e a vida. Ou um salão repleto deles escutando e vivenciando a sabedoria de Amir Hadad; ou em salas cedidas pelas escolas públicas, pátios, praças, corredores, etc. o encontro de várias gerações onde acontece a “feira dos conhecimentos e práticas artísticas, as vivências entre os grupos. Isso tudo durante o dia. À noite, os espetáculos desenham uma nova geografia para a cidade, enfeitam as ruas de rodas coloridas e alegres, tirando o povo de suas casas para se assenhorear das histórias da vida, das artes e das coisas do mundo. É como que um abraço acompanhado de beijo coletivo, um ato de paz e amorização por meio da sinergia e do poder que a ação cultural possui de unir as pessoas. O final da programação noturna fica a cargo dos palhaços, da música e da poesia. Nesta XXIII edição do Escambo, tivemos o privilégio de receber o poeta Zé Cordeiro, carioca que reside há 15 anos em Rosário na Argentina. Chegou ao Escambo sob muita expectativa por parte dele e dos escambistas que já conhecia sua obra, porém ele era desconhecido da maioria. Por sermos parceiros de vários bons momentos da poesia no Rio de Janeiro dos anos 80/90, nos encontramos no Escambo para facilitar uma vivência sobre Cenopoesia, linguagem que criamos ainda quando morávamos no Rio, muito praticada pelos grupos que fazem o movimento. Sob nossa responsabilidade também estava a realização de um espetáculo cenopoético em companhia dos músicos Filippo Rodrigo (Natal-RN), Jadiel Lima (Maranguape-CE), Tom do Ceará (Icapuí-CE) e Johnson Soares (Fortaleza-CE). Alíás, a cenopoesia é discutida, praticada e incorporada como uma linguagem fundamental hoje do Escambo. Há muitos poetas jovens que aproveitam a cenopoesia para expressar e divulgar seus trabalhos. Bom, concluo esta reflexão apostando na esperança de que outros mundos, menos cruéis e mais bonitos, são possíveis sim. O Movimento Escambo está para alimentar essa história com a simplicidade da marchinha feita no primeiro congresso: “O escambo é troca/Todo mundo quer trocar/Troca eu, troca você/Troca aqui, troca acolá” Só depende de nós e da disposição de buscar o outro com o objetivo de nos tornarmos sempre melhores e humanamente mais potentes do que somos. É bom lembrar que, me misturando aqui com Paulo Freire, diria que “ninguém ama de braços cruzados; ninguém aprende, ensina ou se é sozinho”. Por isso já em um dos primeiros escambioses*, escrevíamos: “ É preciso aprender a semear com a máquina do tempo. É vital, mais que vital inventar:vida e verdades, sonhos e realidades; razão com alegria bailando sobre o espelho das áaguas perenes. Ainda esperamos, coitados, as chuvas do céu,quando deveríamos fazer chover no chão de caos e ilusão;umedecer as pedras, fazendo-as verter poesia; transformar em vida a energia do sol em desperdício que hoje nos flagela e definha. A fome, indústria cega e daninha, há de ser O instrumento maior de transformação, tinta e pincel, A reflexão, o painel sobre a eterna falta. Sobre a miséria a ação, o desenlace sem queda. A inteligência carcomida pela força da moeda será o túmulo dos canibais de consciência. É imprescindível e inevitável que sejamos filó Filósofos de nós mesmos. Criadores e semeadores da nossa própria filosofia. Recriadores confessos do nosso rosto. Decoradores do espaço reservado à nossa causa. Defensores incessantes do grito de liberdade, Do motivo do nosso choro, da grife do nosso riso. Precisamos estar sempre dispostos a corrigir nossos costumes;a mergulhar no abissal dos nossos valores culturais para que venhamos a festejar nossa vanguarda e celebrar a estética do brilho estelar da nossa alma. A estiagem haverá de ser nosso eterno objeto de estudo e a resistência nosso princípio, nossa viagem.”

*Boletim do Movimento Escambo, produzido e veiculado geralmente nos congressos.