Palavras Desgastadas

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Peço licença para lembrar uma estorinha infantil que li ha muito tempo atrás. Peço licença também para não citar a fonte. A ausência de memória me impede, desculpa que na verdade é eufemismo para o tempo que vai passando aumentando significativamente o número de sinapses em "curto-circuíto". Não usarei também as novas regras da reforma ortográfica pois o trema já não uso há muito tempo e ainda não sei o que fazer com tantos hifens novos e acentos "velhos".

Mas vamos a estória. Uma garotinha expressava com muita paixão o uso do verbo amar. E ela amava tudo. Amava os pais, amava o cachorrinho de estimação, amava brincar, amava os desenhos animados na TV, amava comer chocolate, amava tomar sorvete, amava ir ao cinema, amava desenhar, amava…amava…

Um dia, o pai dela já cansado de tanto ouvir amar pra cá, amar pra lá, disse em tom muito enfático:

– Minha linda, nós amamos as pessoas, as coisas no máximo gostamos!. As palavras são como a borracha que você usa na escola. Elas vão se desgatando com o tempo, principalmente se as usarmos de maneira errada. Eu e sua mãe não somos sorvete. Sabemos que você gosta mais da gente do que de sorvete. Mas a palavra deve expressar exatamente esse sentido, pois se assim não for, elas perdem seu real significado até que um dia talvez as coisas e as pessoas não tenham mais nenhuma diferença quando expressarmos alegria e amor.

De fato, as palavras se desgastam. No campo das ciências sociais estamos cheios delas: "ideologia", "representação", "trabalho", "política", "esquerda", "direita". E a lista poderia se prolongar indefinidamente. Outras palavras ganham sentidos novos. Um rápido exame de um bom dicionário etmológico pode ser muito instrutivo e até engraçado. Por exemplo, "poluir" até o final do sec.XIX nada tinha haver com ecologia ou meio ambiente e sim dizia respeito a desperdiçar o precioso sêmem a partir da malfadada prática da masturbação, responsabilizada por inúmeros problemas físicos e psíquicos na época. E ainda até hoje muitos adolescentes acreditam que o "vício solitário" fará nascer cabelos nas palmas das mãos.

Mas chegamos ao ponto que gostaria de destacar. Parece que o desgaste atingiu a expressão "humanização", tal o uso e abuso que se faz da palavra. Aliás, basta uma rápida pesquisa na internet para vermos que a humanização está em toda a parte, verdadeira atmosfera que nos circunda a todos, lenitivo para todos os problemas de uma humanidade sem humanidade. Assim, temos que ter humanização no trânsito, na escola, no trabalho…temos que ter uma postura humanizada no trato com todas as pessoas. Consultorias empresariais anunciam aos quatro ventos a  possibilidade de cursos para que as pessoas possam ter relações interpessoais mais humanas.

Assim, a palavra desgastada e "amorfa" vai aparecendo e comparecendo sem que explique absolutamente nada já sendo portadora de toda a explicação. Ela "chafurda" no terreno da busca da construção da bondade como conceito metafísico-religioso e derrapa na estrada do aperfeiçoamento das relações interpessoais nas empresas, substrato putrefato da escola de relações humanas. Quando menos esperamos, ela salta do papel para nos convidar a construir vínculos fraternos com aqueles que desejam nossas cabeças numa bandeja, algo como em meio as bombas de Gaza pedirmos aos palestinos que convidem os soldados israelenses para jantar.

Dia após dia, oficina após oficina, processo após processo, temos que enfrentar o desafio de (re)encontrar o sentido revolucionário da expressão "humanizar", algo que precisa ser posto e reposto todo tempo na medida em que o humano é um ser plástico, é sempre um novo desafio a ser estruturado a cada nova contemporaneidade. Na verdade quando falamos em humanização estamos cometendo o atrevimento de construir a utopia de uma organização social inclusiva e, para tal, temos que lutar para sobrepor um determinado projeto de "humano" sobre os outros. 

Não se enganem, estamos trazendo uma nova peste ao propor colegiados gestores em grupos acostumados à relações despóticas. Estamos acirrando crises quando dizemos pela "enésima" vez que as pessoas são portadoras de direitos. Estamos aprofundando contradições quando afirmamos com todas as letras que devemos e podemos atuar sobre as condições estruturais que determinam a barbárie do desumano. Enfim, somos artífices de um processo de contrução democrática participativa que a partir do SUS pode chegar a outras instâncias da vida social.

Esta parece ser uma possibilidade de construção do humano que me agrada muito. É um bom início de conversa para trazer à expressão "humanização" um sentido que a afaste do pietismo vazio em que ela caiu ou como uma necessidade de amabilidade ôca que alguns consultores de RH insistem em espalhar aos quatro ventos, produzindo a harmonização entre o pescoço e a lâmina da guilhotina.

ERASMO RUIZ