A arte perdida de curar

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Amaury Medeiros*
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O dr. Bernard Lown, professor emérito de cardiologia da Escola de Saúde Pública da Universidade de Harvard (EUA), foi agraciado em 1985 com o prêmio Nobel da Paz em nome da Associação Internacional de Médicos para a Prevenção da Guerra Nuclear, entidade da qual é cofundador. Considerado um dos cientistas mais brilhantes de nossa época, escreveu inúmeros artigos científicos e livros abordando temas os mais variados. Destacamos, entre eles, A arte de curar, quando discorre com maestria sobre a relação médico-paciente e as causas da desumanização da medicina. De início, demonstra a importância da semiologia. Para escutar é preciso ouvir com atenção, para bem escutar é preciso dar rédeas à imaginação. Para bem escutar, semiologicamente, é necessário ser poeta – não no significado estrito de escrever poemas, – porém, de senti-los, vivenciá-los, sendo capaz de construir castelos diagnósticos. Se você é sensível e amativo, pode entender e sentir a angústia dos que sofrem e amá-los. Nesse alicerce poético repousam as bases humanísticas dos profissionais que lidam na área de saúde. Manuel Bandeira, o poeta maior, diz em Estrela da vida inteira: “Prova. Olha. Toca. Cheira. Escuta. Cada sentido tem um dom divino”. Sem se aperceber, expunha Bandeira alguns fundamentos da semiologia médica. Paracelso, médico-alquimista, no século 16, afirmava que um bom médico deveria possuir o sentimento e o tato que lhe possibilitasse entrar em comunicação solidária com o espírito do paciente e a intuição necessária à compreensão de seu corpo e de sua doença. Um estudo feito na Inglaterra mostrou que 75% das informações que levam a um diagnóstico correto provêm de uma história médica detalhada, 10% do exame físico, 5% de algum simples exame de rotina, 5% de exames caríssimos e invasivos e 5% sem esclarecimento. Como fazê-lo numa conversa apressada que não vai além de cinco minutos? O primeiro contato deveria ser um aperto de mãos – saudação de boas-vindas, gesto de hospitalidade e sinal da disposição de aceitar alguém em sua qualidade de ser humano, de semelhante.

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Os médicos cada vez pensam menos e mais se distanciam dos enfermos. A fé pueril na magia da tecnologia é uma das razões pelas quais se tolera a desumanização da medicina.

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Nunca esquecer que a enfermidade humilha e corrói o sentido do eu, tornando as pessoas sumamente vulneráveis às palavras do médico, de quem dependem para sarar e continuar vivas. Infelizmente os tempos mudaram e os médicos não poderiam ficar imunes às transformações advindas. Nos últimos decênios, assombroso foi o desenvolvimento tecnológico. Fascinados pela cintilação dos números e das figuras coloridas dos computadores, eles cada vez pensam menos e mais se distanciam dos enfermos. Nos esforços profissionais de saciar o imenso complexo médico-industrial, os pacientes quase sempre são ingênuos cúmplices. A fé pueril na magia da tecnologia é uma das razões pelas quais se tolera a desumanização de medicina. Multiplica-se o número dos procedimentos suscetíveis de produzir complicações em potencial e transformar cada doente em eventual adversário, com o surgimento crescente dos processos desenvolveu-se a medicina defensiva.

Bertolt Brecht lembrava que o objetivo da ciência não é abrir a porta à sabedoria infinita, mais impor limites ao erro infinito. Os processos são em grande parte consequência da prática médica despersonalizada. Advogados que correm atrás das ambulâncias ou ficam espreitando às portas dos hospitais, corrompem a prática médica, conjurando e exagerando erros, reais ou imaginários. Mais suscetíveis aos processos são aqueles que trabalham em hospitais públicos desprovidos de condições funcionais e, muitas das vezes, movidos pelo espírito humanístico, expõem-se aos riscos, aumentando as possibilidades de falhas. Por outro lado, o medo dos processos se transformou em justificativa para os procedimentos lucrativos, em especial, os invasivos. Não esquecermos que a massificação da assistência médica, os múltiplos e mal remunerados empregos – a corrida desesperada do profissional pela sobrevivência do dia a dia – têm contribuído para este distanciamento médico-paciente. Impossível num espaço tão
curto dissertar sobre o livro que encima essa crônica. É leitura
obrigatória para todo médico.

*Amaury Medeiros é membro da Academia Pernambucana de
Medicina

(Fonte: Jornal do Commercio, 13/02/2009)