Humanizar é Incluir: Incluir é Humanizar!

15 votos

 

“Mas que coisa é o homem,
que há sob o nome:
uma geografia?
um ser metafísico?
uma fábula sem
signo ou desmonte?
Como pode o homem
sentir-se a si mesmo
quando o mundo some?
Como vai o homem
junto de outro homem,
sem perder o nome?

(…)

Como se faz um homem?
Apenas deitar,
copular, à espera
de que do abdômen
brote a flor do homem?
Como se faz
a si mesmo, antes

de fazer o homem?”

(…)

(Carlos Drumonnd de Andrade)

Não é apenas a sina dos poetas. Falar de humanização necessariamente nos remete a um conjunto de reflexões, a saber: o que é o homem? O que é o humano? O que homem está sendo? O que o homem pode vir a ser? Cada uma dessas questões se desdobra em muitas. Na verdade, em última instância, parece que a tradição filosófica se constrói em torno delas e a partir da tentativa de sua superação afirma certo caráter prescritivo do homem e das condutas humanas. As teorias então não são meros instrumentos mentais para se analisar a realidade na medida em que ao dar forma às ações humanas, adquire também um sentido vivo que extrapola a mera reflexão filosófica ou de qualquer outra disciplina. É neste sentido que temos que entender a clássica assertiva de GRAMSCI ao definir ideologia como uma concepção de mundo com validade psicológica intrínseca às ações humanas, tendo, portanto, um caráter (auto)explicativo das condutas concretas.

Partindo-se dessa premissa, toda a ação humana possui um caráter significativo. Os sujeitos que agem precisam teorizar, explicar a respeito de suas ações. Assim, uma ação só pode ser “humana” ou “desumana” na medida em que um complexo e contraditório conjunto de concepções de mundo ofereçam escopo para julgamentos que sempre possuem um caráter prescritivo ao trazerem, de forma explícita ou não, um julgamento de valor sobre o que é realizado. Em todos os espaços da vida isso acontecerá e a saúde não se opõe aos espaços da vida, pelo contrário, é um dos seus elementos e expressões. Como categoria historicamente determinada, o campo da saúde e suas práticas serão contextualizados como humanas ou não a partir de sua demarcação histórica e social. Mas não apenas a saúde. Também aquilo que ficar convencionado como doença, amor, liberdade, ódio, morte, vingança etc.  Mas o que define o humano? O que o configura como categoria histórica? Por que ao olharmos hoje o costume dos antigos romanos de irem às suas arenas e se divertirem com a violência sangrenta o rotulamos como “bárbaro” e “desumano”? Por que naquele momento histórico os romanos percebiam sua própria conduta como refinamento e encontravam gozo estético na violência explícita? A resposta mais ou menos óbvia parece ser a de que em cada momento histórico o que é humano é constituído por elementos que parecem ser pertinentes a sua contemporaneidade. Para entendermos o que é o “humano” a cada novo momento histórico, temos que entender também como as categorias de “indivíduo” e “pessoa” parece evoluir até os sentido que lhes damos hoje.

Não iremos discorrer sobre isso. O importante a ser assinalado, no entanto, é que, historicamente, indivíduos e grupos foram alijados da sua condição de humanidade. Na maioria das vezes isso ocorria como uma justificativa moral e política dos grupos que exerciam o papel de domínio. Só eram humanos determinados grupos, os outros cumpriam um papel “menor”, ora chamados de instrumentos falantes (como acontecia com os escravos na Grécia antiga), ora como seres sem alma (como os índios no início da colonização), ora como humanos com características animalizadas (como o negro africano escravizado nas Américas). Os portadores de  deficiência sempre ficaram a mercê do julgamento moral. Como seres humanos lhes faltavam “atributos” físicos e/ou mentais e essa “falta” ora era julgada como desígnio de Deus ou como forma de expiação de culpas e pecados.

Com o tempo, as deficiências tornaram-se campo da investigação científica para, gradativamente se transformarem num problema médico. Mas ainda faltava algo importante. Investigar as causas da surdez ou da cegueira não resolvia o problema da inserção social, da forma como aqueles tidos como “normais” significavam e tratavam os outros. Ser deficiente auditivo u visual, por exemplo, não acarretaria necessariamente nenhum problema. A questão está na forma como as pessoas dotadas dessas deficiências acabam sendo inseridas em relações sociais historicamente demarcadas. E hoje uma criança nascer com distrofia muscular isso não a colocaria em risco imediato de vida. O mesmo não poderíamos dizer, se essa criança tivesse nascido em Esparta onde era destinada a ser arremessada do alto de um penhasco. Hoje não arremessamos mais um deficiente fisco para  a morte mas, tragicamente, podemos lhe destinar uma morte social quando sistematicamente ele estiver sendo afastado da convivência social com outros seres humanos, seja pelo preconceito, seja pelas barreiras físicas nas casas e ruas.

Peço licença agora para lembrar um belo filme intitulado “O Homem Elefante”. É a história tocante de um homem que sofria de elefantíase. A doença causava-lhe deformações pelo corpo todo, notadamente, da face e do crânio. Durante toda sua vida tinha sido utilizado como objeto de curiosidade em circos e feiras, até que um médico se compadece de sua situação e tenta fazer com que conviva socialmente com outros seres humanos. Se essa situação provavelmente causaria muitos problemas hoje em dia, imagine no final do século XIX. Mais para o final do filme, o personagem foge da casa do médico, fica perdido pelo metrô de Londres e acaba sendo perseguido pelas pessoas. Acuado, ele grita em desespero: “Eu sou um ser humano”!

Quando incluímos estamos na verdade humanizando. Para humanizar temos que incluir as pessoas nas condições daquilo que chamamos de humano e de humanidade. A Política Nacional de Humanização do Ministério da Saúde (PNH/MS) afirma que  temos que incluir diferentes sujeitos no processo de produzir saúde, sejam eles usuários, trabalhadores ou gestores para, a partir do seu protagonismo, produzirem autonomia e co-responsabilidade. Mas não se incluem apenas as pessoas, mas também os fenômenos sociais que desestabilizam formas tradicionais de gestão para assim potencializar os processos de mudança. Por fim, devemos incluir os movimentos coletivos que atuam sobre a saúde e que são decisivos para implementar as mudanças necessárias.

Pelo que podemos depreender,  os muitos grupos que lutam pelos direitos dos portadores de deficiência percorrem caminhos muito similares. Na verdade, quando lutamos para que rampas sejam colocadas nas calçadas estamos afirmando que TODOS os seres humanos devem ter o direito de transitarem pelas ruas. Significa, portanto, em última instância que todos são seres humanos na medida em que podem transitar pela cidade mesmo que em condições diferente. Mas não basta garantir conquistas que tornem a acessibilidade uma realidade. No meu ponto de vista esse é um primeiro e tímido passo. O objetivo final é que todos os seres humanos possam se reconhecer enquanto humanos apesar de suas muitas diferenças. Humanizar é incluir e incluir é humanizar, é ultrapassar as barreiras do preconceito construindo as bases de uma sociedade constituída pela busca diuturna de relações solidárias embasadas numa cultura de paz. Para tal empreitada, talvez o método preconizado pela PNH possa extrapolar as questões diretamente relacionadas à saúde e ser uma política para atrevidamente humanizar o humano, radicalizando o questionamento da barbárie, seja onde ela estiver!