MÉDICOS/AS ESTRANGEIROS/AS: SAÚDE PÚBLICA E INTERESSES EM JOGO

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Durante o pronunciamento em rede nacional da presidenta Dilma Rousseff, no dia 21 de junho, comentando os protestos que tomaram conta das ruas do Brasil, um dos projetos apresentados dizia respeito à vinda de médicos/as do exterior, para ampliar o atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS). Tal medida integra o programa Mais Médicos, do Ministério da Saúde, e que tem, entre outros objetivos,trazer 4 mil profissionais estrangeiros/as ao país, até o final de 2013. No entanto, reações contrárias da classe médica diante deste anúncio se evidenciaram, resultando, entre outras ações, em um ato, no dia 3 de julho, organizado por entidades como o Conselho Federal de Medicina (CFM), e que mobilizou médicos/as, professores/as, residentes e estudantes de medicina em todos os estados. De acordo com o Jornal Medicina, publicado pelo CFM, tais reações aconteceram em oposição ao que descrevem como decisão do governo federal de “promover a importação de médicos formados no exterior sem a devida aprovação pelo Revalida em seus moldes atuais”.

Para o CFM, trazer médicos/as estrangeiros/as é uma medida com efeito paliativo, não atacando problemas da falta de acesso à assistência e de baixa qualidade nos serviçosoferecidos e, diante disso, a entidade tem atuado junto aos poderes Executivo e Legislativo pela derrubada desta proposta. Em afirmação ao Jornal da Medicina, Roberto Luiz d’Avila, presidente do CFM, ressaltou que “não há flexibilização ou mudança neste entendimento expresso pelo CFM e demais entidades médicas. Se o governo tentar impor sua vontade pormeio de instrumento normativo, como uma medida provisória, empreenderemos todos os esforços possíveis para a derrubada desta determinação, inclusive apelando ao Poder Judiciário e às cortes internacionais”.

ESCASSEZ – Se, de um lado, o CFM e outras organizações de classe afirmam que há médicos/as em número suficiente para atender à demanda brasileira, existindo, na verdade, problemas de infraestrutura e financiamento no sistema de saúde do país, de outro, posicionamentos de profissionais e pesquisadores/as da Saúde Coletiva reconhecem que realmente há uma escassez de mão-de-obra que precisa ser suprida. Além disso, dados oficiais apontam que no Brasil existem 1,8 médicos/as para cada 1 mil habitantes, média abaixo da Argentina (2,2), Uruguai (3,7) e do Reino Unido (2,7), país referência na área em se tratando de saúde universal. Segundo o Ministério da Saúde, existe forte desigualdade da distribuição desses/as profissionais pelo país, de forma que, dos/as 360 mil médicos/as em atividade no Brasil, em 2012, 203 mil atuavam na região Sudeste.

Na avaliação de Raphael Mendonça, enfermeiro e sanitarista, doutor em Saúde Pública e professor adjunto do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro, existe, de fato, uma carência de profissionais de algumas especiailidades médicas no país, em função de diferentes fatores. Um deles é o longo processo de desqualificação da atenção primária observado na medicina e visível no Brasil, em prol de um movimento de ultra especialização. De acordo com Raphael, há no país uma carência de médicos/as especialistas na atenção básica, na pediatira, obstetrícia, carreiras consideradas especialidades básicas e que, junto com a clínica médica e a cirurgia geral, compõem os grandes blocos de atuação.

Além disso, essas carreiras “representam, para um hospital, a média complexidade no SUS, que é hoje nosso calcanhar de Aquiles. O mercado continua tendo a demanda por esse tipo de profissional, mas não tem mais a oferta. E, naturalmente, o que está se fazendo é tentar trazer pessoas de fora para trabalhar nestes campos. Esta situação não é incomum no mundo. Há anos a Itália e o Canadá importam enfermeiros brasileiros, bem como Portugal e Espanha importaram dentistas nossos”, explica o sanitarista.

FORMAÇÃO – Um segundo aspecto que Raphael destaca analisando a escassez de médicos/as no país está associado a uma redução na disponibilidade de centros de formação em medicina. Ele descreve que há uma restrição quantitativa com relação à formação de médicos/as, não havendo tantos centros formadores no Brasil, o que impacta diretamente na qualificação, e mais ainda na oferta. Segundo o sanitarista, “o que temos hoje é uma proteção da carreira médica, no sentido de tentar formar uma quantidade um pouco menor de médicos, mas com mais qualidade. O que acho que procede. Só que isso cria uma dificuldade para o sistema de saúde que é ter pouco médico formado. Aí é valor de mercado mesmo, se você tem poucos [profissionais], o médico vale mais”.

REVALIDA – Assim como entidades médicas criticam a possibilidade de contratação de médicos/as estrangeiros/as sem que estes/as passem pelo Revalida, o Exame Nacional de Revalidação de Diplomas Médicos obtidos no exterior, Raphael Mendonça caracteriza a revalidação como essencial para este processo. “Sou favorável à vinda de médicos estrangeiros, como também sou favorável à ida de médicos, enfermeiros, quem for, daqui para fora. Mas há que se ter critérios sobre isso. A questão da revalidação para mim é essencial. Até porque isso é uma questão legal. Se o médico não estiver revalidado, não poderá exercer a medicina. Se for, por exemplo, um médico dinamarquês que vem para o Brasil e começa a trabalhar com o seu diploma de médico e não é revalidado, isso é exercício ilegal da profissão, é crime”, ressalta.

Ainda que se identifique uma polarização no debate motivado pela vinda de médicos/as estrangeiros/as para o Brasil, o que tem se observado nos últimos protestos em curso no país é que diferentes pautas relacionadas à saúde vêm ganhando voz nas reivindicações. O que é um ponto favorável para ampliar o debate sobre acesso ao direito à saúde, assistência, condições atuais do SUS, demandas de usuários/as e serviços oferecidos, não só na rede pública. Entretanto, é importante que interesses de categorias e aspectos corporativos sejam superados, envolvendo profissionais de saúde das mais diversas áreas na defesa maior da saúde pública brasileira e do atendimento às demandas da população, conforme reforça Raphael Mendonça: “A luta é pelo SUS, e não pela importação ou não dos médicos estrangeiros”.