Achados arqueológicos: “O Inferno”, por Caho Lopes (fragmento, 1992)

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Capítulo V

Agosto de 1992

 

Klaus estava sozinho no pátio, pegando um pouco de sol depois do almoço. Quando despertara pela manhã, a primeira coisa que fez foi marcar em seu calendário os dois meses que completava dentro da clínica. Estava refletindo, fazendo um balanço destes dias que haviam modificado o curso de sua vida. Principalmente os dias em que sua consciência estivera ausente, forçada pelo grande volume de medicamentos que havia ingerido.

Agora que voltara a normalidade, acreditava que César estava certo quando lhe disse que quase enlouquecera. Estivera caminhando sobre a tênue linha que separa a sanidade da loucura. Os limites eram muito imprecisos, dificultando a colocação dos rótulos normais como início, meio e fim. Sofrera muito durante o tempo em que estivera medicado e amarrado. Mesmo quando estava deitado, seus braços eram amarrados na cabeceira e as pernas nos pés da cama. Não tinha a menor possibilidade de movimento, o que se tornava particularmente torturante quando o clima esquentava, os mosquitos picando seu corpo, sem que pudesse fazer nada para evitá-lo.

O próprio medicamento que lhe era ministrado deixava seqüelas terríveis. A língua aumentava radicalmente de volume, e as vias respiratórias ficavam fechadas. O remédio era tão forte que tinha de ser auxiliado nos horários das refeições. Os seguranças pegavam-no pelos cabelos, para que a cabeça não caísse me cima do prato de comida. No início, divertiam-se deixando que isto acontecesse, mas depois deixaram-no em paz. Talvez porque tinham de ajudá-lo a se lavar, o que não era agradável, pois frequentemente babava pelos cantos da boca. Foram dias terríveis, talvez os piores que já passara em toda sua vida.

Quando, num gesto desesperado, implorou a Edgar que mandasse suspender o medicamente, não conseguiu ser compreendido. Não lhe era possível articular as palavras, a língua jazia morta dentro da boca. Em seus sonhos escutava vozes. Ouvia as filhas chamando, acordando solitário durante a madrugada, tentando erguer-se da cama, encontrando a realidade das amarras lhe roubando os movimentos.

César dissera que muitas vezes sentava-se num canto do pátio, balançando a cabeça e o corpo de um lado para outro, enquanto balbuciava palavras desconexas, rindo para os colegas que passavam. Até mesmo Kevin ficou assustado. Todos pensavam que, como tantos outros pacientes, Klaus enveredara por um caminho sem retorno em direção á insanidade. Mas ele conseguira voltar. E sabia perfeitamente como isso acontecera.

Mesmo alguns dias depois que pararam de lhe ministrar os medicamentos, continuou agindo como se ainda estivesse sedado. Apenas conseguia falar e respirar melhor. Começara a debater-se durante seus pesadelos noturnos, agora que estava livre das amarras. E acordava sempre gritando, o terror estampado em seus olhos vitrificados. Até que, certa noite, ao acordar teve a consciência de que estava enlouquecendo. Meu Deus, isto não pode estar acontecendo comigo. Tenho duas filhas que ainda precisam de mim, não posso deixá-las desamparadas desta maneira – pensara. Daquele momento em diante, começara o caminho de volta à sanidade.

Seus atos dementes foram pouco a pouco diminuindo, voltou a conversar com seus companheiros, principalmente com Rui, que chegara há pouco. Era um médico, de aproximadamente 45 anos, vindo de Santa Maria. Como todos que chegavam, tinha a esperança de que não ficaria muito tempo ali dentro. Victor obsequiara-o com uma de suas pérolas de humor negro: – Acredito que realmente tudo isto não passe de um lamentável engano. Amanhã ou depois a tua família te tira daqui. Mas o que mais perturbara-o nos primeiros dias foi o fato de ter sido obrigado a retirar a barba, que cultivava há vários anos. Tentara argumentar com os psiquiatras de que não existia um motivo plausível para isto. A única resposta que obteve foi de que isto era norma da clínica, os pacientes não podiam ostentar barba. Era sua iniciação nesta legítima casa de doidos.

Claro que o excesso de pacientes não passou desapercebido pela direção da clínica, como Klaus logo descobriu. Estavam reformando o primeiro quarto à esquerda, logo depois da porta de ferro, que pretendiam transferir um pouco mais para frente no corredor. Mais um segurança havia sido colocado em cada turno. Um deles, Jorge, havia ficado penalizado com a situação de Klaus lá dentro. Era um trunfo que tinha em mãos, e pretendia utilizá-lo bem. Havia passado por um calvário e aprendera com isto. Seria mais cuidadoso no futuro.

Levantou-se, limpando as mãos na parte de trás das calças. Quando ia para o ambiente, escutou a voz do verdureiro que passava por ali duas vezes por semana. Certa vez, na janela de seu banheiro, Klaus havia vislumbrado o pequeno caminhão, com dois alto-falantes em cima, apregoando os legumes que oferecia naquele dia. Pensou no quanto gostaria de dizer ao verdureiro que ele era feliz, pelo simples fato de estar lá fora, indo e vindo para onde bem entendesse.

Talvez algum dia fizesse isto.

 

LOPES, Chao. Ala fechada. Porto Alegre: Sulina, 1994. pp. 97-99.

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