FEIRA DO SOMA SEMPRE E A PRODUÇÃO DO COMUM

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FEIRA DO SOMA SEMPRE E A PRODUÇÃO DO COMUM

 

Por Ray Lima

 

Pela lógica do Movimento Escambo Popular Livre de Rua e da Cenopoesia, a vida é percebida como um sistema livre, fluido que funcionando em redes-rodas abertas. A rede-roda aberta pode tornar aparentemente o sistema mais vulnerável, avesso a prognósticos apressados, cheio de incertezas do ponto de vista de quem crê ou defende processos centralizados ou descentralizados, mas sempre sob o controle absoluto de alguém ou algum grupo. Porém, o sistema em rede-roda aberta é potencializado e seus atores igualmente toda vez que abre novas frentes de relações (interações), tornando-se um sistema imprevisivelmente criativo e regenerável ao contrário daquele caracterizado pela rotina burocrática, divisionista, competitiva e não cooperativa, produtora de desigualdades, própria das estruturas fechadas, centralizadas, dominadoras, hierárquicas, autocráticas.

 

PEQUENO INTRODUTÓRIO À FEIRA DO SOMA SEMPRE

Quem vai à Feira do Soma Sempre deve ter em mente que na vida (sistema livre, fluido em rede-roda aberta) nada se perde, onde ninguém prospera sozinho “parado esperando a morte chegar.” Ali ou aqui ninguém espera, conquanto tudo se espera do encontro com o outro. Cada um age e interage o tempo todo no sentido de construir novas possibilidades de ser e agir (com outros), em busca de novo ser e ser de novo enriquecido, recriado, seja em sua organização, no trabalho, na escola; seja na praia, na igreja, no estádio, na praça, no campo ou na cidade.

Quando uma prática vira experiência e, por sua vez, esta se transforma em conhecimento, em saber, significa que mais do que atores nos tornamos também autores do processo da vida e da história humana que expande para além de nós no tempo-espaço das relações que nos metemos. Por isso, acreditando que todos somos portadores de experiência e saber, do mesmo modo temos algo a oferecer e a receber do mundo, de outrem.

Sendo assim, ninguém é pobre o bastante para nada ofertar, como ninguém é rico suficientemente para abnegar. Em outras palavras, ninguém absolutamente se basta a si mesmo que independa do convívio ou da interação com o(s) outro(s). A autossuficiência, a penúria, a indiferença e a indisposição não cabem como produto ou valor de escambo na Feira do Soma Sempre e produção do comum. Aqui e lá sempre há o que se apreender, o que dar e receber.

E o receptivo para abrigar tantas práticas, experiências e saberes novos advindos da interação e do compartilhamento com o outro é a nossa estrutura mental e física fluida e livremente distribuída associada à curiosidade como ao desejo de aprofundar nossa humanidade e expandi-la. Aliás, a humanidade já se encontra em nosso meio, basta que a ativemos em nós.

 

DAS INSTITUIÇÕES, OS SUJEITOS E A FEIRA DO SOMA SEMPRE

A Feira (do Soma Sempre) é livre e altamente rotativa. Quanto mais interação mais aprendemos, mais criamos, mais transformamos e nos transformamos, mais lucramos humanidade. Não há espaço para ilhamentos, inércia, para o não movimento.  O não movimento é mortal para Feira do Soma Sempre. Vale dizer que conhecimento empoçado, empacotado, engavetado produz limbos que o tempo escorrega e por ele passa depressa reclamando sua pouca serventia para o mundo, acusando sua avareza, seu custo desnecessário, sua insustentabilidade.

Na Feira do Soma Sempre não há preocupação com setorização das riquezas postas em relação; controle nem departamentalização do poder, do saber, da ideação criativa do mundo. Antes de tudo, a Feira do Soma Sempre é um ato de vontade e liberdade individual que se torna coletivo com o desenrolar das interações entre os sujeitos. Ou seja, não há fronteiras, limites na mentalidade, na cultura do soma sempre, mas espaços da rede-roda aberta que envolvem escuta, expressão, cuidado, refinamento dos olhares e qualificação das práticas humanas em torno da produção do comum que se autogere, multiplica-se, expande-se, flui e reconfigura-se natural, livre, coletiva e continuamente, indo além do conformado e instituído.

As instituições como estão organizadas e orientadas não correspondem ao ideal de organização e práticas políticas almejadas pela Feira do Soma Sempre que tem como fundamento a pessoa e o outro que a compõe, e estes atuando na vida em plena liberdade. As instituições, de acordo com os padrões atuais, colocam-se acima das pessoas. Como podem pessoas ser regidas por instituições se as instituições não são capazes de governarem-se a si mesmas? Se as pessoas criaram as instituições como estratégia de governança nenhuma delas está acima da outra. As pessoas dão destino, alma e vida às instituições, mas ninguém tem o direito de apropriar-se delas para dominação de outras. Por sua vez, em alguns momentos da história humana, as instituições constituíram lugares de práticas democráticas e de atuação como agentes de transformações, revolucionárias. Neste caso, fica o importante indicativo de que as instituições também têm vida e, por isso, podem e devem ser transformadas e transformadoras como as pessoas. Ainda assim, as pessoas não devem inspirar-se ética e culturalmente nas instituições porque estas não possuem vida, ideia ou vontade própria. As pessoas fazem as instituições e estas acomodam as inquietações ou marasmos, vícios e virtudes daquelas.

Pode ser até, adaptando o dito popular, que as instituições permaneçam e as pessoas passem, no entanto, sempre haverá pessoas gerindo, configurando o modo de agir das instituições, dando-lhes vida adequada aos seus interesses pessoais, de classe ou, em raros casos, efetivamente coletivos. Igualmente, sem as pessoas as instituições simplesmente desaparecem ou perdem o sentido de sua existência.

Seguindo o raciocínio inicial da conversa. A Feira do Soma Sempre é uma forma de as pessoas tocarem a política, a vida em seus mundos para além das instituições sem necessariamente precisar negá-las ou condená-las pelos males da sociedade em que vivem, ou sublimá-las como guardiãs da felicidade humana e salvadoras dos pobres mortais. De outro modo, não obstante as instituições façam parte da vida social, política, cultural e econômica dos indivíduos têm demonstrado não dar conta da complexidade da vida humana, planetária, universal. No fundo, a grande e verdadeira instituição, instável e fascinante por que todos lutamos é a vida, da qual nos valemos para enquanto viventes expressarmos o sentido de nossa própria existência.

A Feira do Soma sempre se dá quando acreditamos que:

        saber é saber que todos sabemos um pouco;

        que estamos dispostos a interagir com o outro;

        que, ao interagirmos, podemos saber e ser mais;

        que todos temos o direito legítimo a produzir,

        expressar e difundir livremente o que produzimos

        sem a pressão e a falsa necessária validação do outro,

        de alguma instituição ou alguém supostamente superior,

        detentor da verdade e das experiências socialmente válidas;

        que podemos sonhar e sonhamos exercendo livremente

        os poderes exigidos pelo estatuto da vida

        em conexão com o outro e o mundo;

        que o poder e o saber não existem senão

        para serem exercidos por todos;

        que saber se soma sempre, infinitamente humanidade

        adentro, mas não deve ser cumulativo senão circulante,

        compartilhado, democratizado, difundido e enriquecido;

        experimentado, atualizado e utilizado

        em melhoria da vida coletiva por todos;

        que o poder coletivo é sempre maior e mais belo

        que o arrogante e mesquinho poder isolado

        e desolador de um

só.                                                                      

 

A Feira do Soma Sempre não seria o lugar de produção de estratégias, modos de pensar e agir para lidar ou encarar o advento do buraco negro de um sistema que tudo sabe, tudo pode, tudo controla, tudo possui, acumula, deforma, absorve e devora?

 

                  DO BURACO NEGRO IMINENTE
                               À percepção sensível
                               Do salto imortal divino mítico
                               Ao ser em sobressalto a superar-se

                               Eis-me diante do abismo
                               E me faço ponte
                               Eis-me diante do abismo
                               E me faço ponte

                               Da sede que flagela e mata
                               Às matas que preservam as fontes
                               Da morte que enterra e some
                               À vida que ressurge aos montes

                               Eis-me diante do abismo
                               E me faço ponte
                               Eis-me diante do abismo
                               E me faço ponte
  
                               Do que percebo e torno percebido
                               Do visto e lido nas entranhas
                               Da faca lanho corte da libido
                               Aos muros que a liberdade estranha

                               Eis-me diante do abismo
                               E me faço ponte
                                Eis-me diante do abismo
                               E me faço ponte

                               Do estranho ser que se revela humano
                               Ao humano que só se quer razão
                               Da sublimação da arte ao puro engano
                               Do poder ao despudor da criação

                               Eis-me diante do abismo
                               E me faço ponte
                               Eis-me diante do abismo
                               E me faço ponte

 

DINÂMICA DA FEIRA – algumas ideias

Feira do Soma Sempre – Trata-se, no fundo, de uma simulação de rede social, de como os sujeitos em rede interagem, se relacionam e ou podem se relacionar numa comunidade ou movimento social com vistas a uma sociedade democrática, cuidadora e solidária.

Regra do jogo e dinâmica da Feira do Soma Sempre – Definição de pequenos grupos por experiência e organização de espaços específicos para que cada um conte sua história (experiência) aos demais que estarão circulando em busca da novidade do outro, o que é, como se deu caminhada, o que tem feito, como arma suas estratégias de existência e resistência, etc.

A mesma história será contada consecutivamente o número de experiências e atores presentes no encontro e de forma sintética, de acordo com o tempo disponível, ao modo de cada equipe e com os recursos (humanos criativos) que dispuserem para isso; e os sujeitos que compõem cada uma destas experiências se alternarão na CONTAÇÃO e na ESCUTA das outras. Dessa forma, individualmente os atores/atrizes de uma mesma experiência poderão interagir e aprender sobre dez experiências diferentes, permitindo que o conjunto da dupla de cada experiência interagirá com todas as demais participantes da Feira do Soma Sempre. A cada 10 minutos o tambor ecoa sinalizando que os integrantes de cada equipe devem ir se alternando na apresentação e na escuta até que cada um conclua suas CONTAÇÕES e ESCUTAS. O importante é compreender que há de ter sempre um ator de cada experiência em seu espaço de CONTAÇÃO para receber os visitantes das demais e pelo menos um outro ator/atriz em um dos seus espaços de ESCUTA, conectando-se com outra experiência, de forma que os espaços de CONTAÇÃO não fiquem sem alguém de referência da experiência para contar sua história. Todos, portanto, comunicarão tantas vezes forem necessárias sua experiência e escutarão por sua vez outras tantas histórias diferentes. Com isso as redes se instalam, havendo escuta, expressão, comunicação, interação e circulação dos saberes e práticas, aprendizagem, possíveis concretas transformações.

Ao final, as pessoas escreverão em tarjetas o que aprenderam com as experiências dos outros, produzem uma síntese da dupla e na grande roda se discutirá o que aprenderam todos.

 

“PARTO
PARTO COMO VIM
DE UM SER QUE ERA
PARA SER QUE SOU
DE UM SUFICIENTEMENTE INCOMPLETO
PARA OUTRO SEMPRE SERÁ SENDO

PARTO
DO QUE VI E NÃO VI
DO QUE FUI E NÃO FUI
DO QUE PUDE E NÃO PUDE
DO QUE LI E NÃO LI
DO QUE PRECISO CONHECER PARA SER

PARTO
DO TOPO DA ARTE
DESTA RAZÃO DE SER
DE ALGUM COMEÇO
COM NENHUM OU TALVEZ

OU TALVEZ ALGUM FIM”
(Lima, Ray. Lâminas)