Das agruras da Saúde Indígena: um retrato sobre a V Conferência Nacional de Saúde Indígena

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Desafios demais, debates de menos

Delegados da Abrasco convidados pela ‘Radis’ para fazer um balanço do evento detectaram poucos avanços na garantia da saúde dos 305 povos que habitam o país

Ana Cláudia Peres

 
Os números da 5ª Conferência Nacional de Saúde Indígena (CNSI) impressionam: 1209 delegados; 20 Grupos de Trabalho; 453 propostas em jogo; 446, aprovadas. Mas escondem uma preocupação. Apesar de grandiosa, a aguardada edição da conferência, realizada de 2 a 6 de dezembro, em Brasília, trouxe poucos avanços, se levado em conta o tamanho dos desafios que precisam ser enfrentados para a garantia da saúde dos 305 povos indígenas que habitam o território brasileiro. Essa é a opinião dos pesquisadores Paulo Basta, Ana Lúcia Pontes e Maurício Leite, que participaram do evento como delegados da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e foram convidados pela Radis para fazer um relato do que presenciaram. 
Dividida em quatro eixos temáticos, a 5ª CNSI teve como tema central Subsistema de Atenção à Saúde Indígena e SUS (SasiSUS): direito, acesso, diversidade e atenção diferenciada. E, como objetivo, aprovar diretrizes para as políticas de saúde executadas nas aldeias por parte dos 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs). Nos grupos, foram debatidos temas relacionados a atenção integral e diferenciada nas três esferas de governo; controle social e gestão participativa; etnodesenvolvimento e segurança alimentar e nutricional; e saneamento e edificações de Saúde Indígena.
O problema verificado pelos delegados da Abrasco foi que, com uma estrutura que priorizou a agilidade em detrimento do debate, a etapa nacional da Conferência acabou limitando a participação e aprovando propostas contraditórias, como analisou o pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) Paulo Basta. Pela metodologia da 5ª CNSI, os 20 Grupos de Trabalho funcionavam como miniplenárias e cada um deles tinha a robusta missão de, em três dias, votar as 453 propostas do Relatório Consolidado, fruto das 34 etapas distritais e 306 etapas locais que antecederam a nacional. 
Assim, se uma proposta fosse aprovada em mais da metade dos GTs estaria automaticamente aprovada pela Conferência. Por outro lado, para ir a debate na Plenária Final e sofrer alteração total ou parcial, necessitava ter recebido destaque em pelo menos 11 dos 20 grupos. Isso justificaria, de acordo com os delegados da Abrasco, o baixo número de propostas levadas à plenária final: apenas 25  — dessas, 18 aprovadas com modificações, o que significa que a Conferência teve 95% de propostas aprovadas. “Mas isso teve um custo”, acrescentou Paulo à Radis. “Muitas das propostas que irão compor o relatório final são incompatíveis entre si, carecem de um amparo legal ou guardam inconsistências”. 
Um exemplo disso foi a polêmica em torno do subeixo que trata dos desafios da área de recursos humanos para a saúde indígena. Uma das diretrizes aponta que o Ministério da Saúde deve garantir a realização de concurso público regionalizado para a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). Outra recomenda a incorporação direta dos funcionários. “Como isso se resolve?”, indaga Paulo. De acordo com os delegados, a falta de debate prejudicou também os encaminhamentos em relação ao acesso à alta e média complexidade — nó atual do subsistema e pauta muito presente nas discussões do movimento indígena — ao aprovar propostas que atribuem à Sesai tarefas que não são de sua competência. “O modo como o evento foi estruturado impediu que fossem feitos os esclarecimentos necessários”, acrescentou o delegado da Abrasco.
Para a professora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) Ana Lúcia Pontes, parecia haver uma unidade entre os setores, quando na verdade o que ocorreu foi um aparente consenso. “As questões não foram amadurecidas como deveriam. E isso faz com que o relatório final perca um pouco o peso de diretriz”, pondera. “Se você aprova duas propostas com indicações distintas sobre uma mesma pauta, pode executar ou não executar a ação e isso vai ser referendado pelo relatório”.
 
Invisibilidade
A falta de debate pode revelar mais do que um problema na metodologia, como aponta Maurício Leite, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Ele cita o protesto realizado na cerimônia de abertura da conferência como emblemático de uma situação a que os povos indígenas estão submetidos há mais de cinco séculos. Durante a solenidade, a delegação do Mato Grosso do Sul manifestou-se com faixas e palavras de ordem bem à frente da mesa de abertura. “Aplaudido pela plateia, o grupo foi ignorado pelas autoridades. Para Maurício, o episódio pode funcionar como metáfora para a invisibilidade indígena no Brasil. “A sensação é de que não houve efetiva abertura para o diálogo mas um exercício retórico que limitava a participação”.
Na página oficial da Conferência na internet, a Sesai argumenta que as propostas que chegaram à Conferência vieram das bases, a partir do que foi votado nas conferências locais e distritais ao longo de 10 meses. Segundo a secretaria, os debates durante a 5ª CNSI abarcaram o que há de mais atual para melhoria da assistência prestada aos quase 900 mil indígenas do Brasil. O titular da Sesai, Antônio Alves de Souza, ressaltou a participação coletiva. “Agora, trabalharemos em um sistema de monitoramento e acompanharemos a implantação do que foi aprovado durante a Conferência”, completou.
 

Portarias, protestos e moções

Ainda durante a cerimônia de abertura, o então ministro da Saúde, Alexandre Padilha, assinou portaria que garante a participação de representantes indígenas em reuniões decisivas para a destinação das verbas do setor em estados e municípios. Mas o mais comemorado, de acordo com Paulo Basta, foi a portaria que autoriza a compra, pelos DSEIs, de todos os medicamentos da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename), o que otimiza a oferta nas aldeias e cria grupo de trabalho para avaliação e elaboração de incorporação de novos medicamentos e insumos para atendimento à Saúde Indígena no SUS.
O terceiro dia da conferência foi marcado por uma manifestação, na Esplanada dos Ministérios, pelo reconhecimento dos direitos indígenas à terra. O assunto também esteve presente na Moção de Repúdio, aprovada pelos delegados, que pede empenho nas investigações de crimes de agressões e homicídio a índios por parte de fazendeiros. Foram aprovadas 57 moções de Apoio, Apelo, Repúdio, Solidariedade e Outros. A Abrasco foi autora de Moção de Apoio à regulamentação e profissionalização dos Agentes Indígenas de Saúde (AIS) e Agentes Indígenas de Saneamento (Aisan), baseada em documento que o Grupo de Trabalho em Saúde Indígena da instituição levou para subsidiar as discussões da 5ª CNSI. 
A pedido de Radis, os delegados da Abrasco fizeram um balanço sobre os dias de conferência, os pontos polêmicos, os momentos-chave, e sobre as possibilidades que a 5ª CNSI traz para a saúde indígena.
 

Propostas contraditórias

“Considero um ponto alto do evento ter conseguido reunir um contingente de lideranças de praticamente todos os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) e mais de 1.200 delegados de várias regiões do Brasil, para discutir as questões da política de saúde indígena. Houve um momento, durante a cerimônia de abertura, que pode ser considerado emblemático: a delegação do Mato Grosso do Sul, com mais de 100 pessoas, fez um protesto contra problemas de toda ordem que vêm experimentando. E eles se manifestaram ali, na frente das maiores autoridades que compunham a mesa. Isso é importante, embora seja preciso ressaltar que essas autoridades ignoraram por completo o protesto. Foi curioso porque os manifestantes levantavam faixas na frente do púlpito e gritavam palavras de ordem e as autoridades ignoravam aquilo. Continuavam fazendo seus discursos ao microfone, mas ninguém mais ouvia. 
Penso que houve um ponto muito limitador dos debates que acabou engessando a conferência. O debate até transcorreu nos grupos temáticos. Mas, pelo regimento, não era possível acrescentar nada ou fazer qualquer contribuição adicional na elaboração das propostas. A proposta que veio da base passava integralmente ou passava com supressão ou era excluída. No grupo de que participei, por exemplo, várias propostas foram debatidas, mas não chegaram a ir para a plenária final. Ou seja, na plenária final, que deveria ser o auge de uma conferência, onde se faz um debate mais amplo, esse debate simplesmente não houve. O argumento usado era que todas as propostas que passaram vieram das bases. Mas isso teve um custo. Muitas das propostas que irão compor o relatório final são incompatíveis entre elas, carecem de amparo legal ou guardam inconsistências, como a que exige atenção de nível terciário em casa de saúde indígena. Em relação aos recursos humanos [tema do Subeixo ‘Avanços e desafios na área de recursos humanos para a saúde indígena: formação, educação permanente, capacitação e práticas de saúde e medicinas tradicionais’], apareceram várias propostas contraditórias: passou a proposta para processo simplificado de seleção com base em currículo, passou proposta de incorporação direta dos funcionários que estão atuando nas organizações não governamentais com serviço público, passou proposta de concurso temporário, passou proposta de regime jurídico único. Teve de tudo. Como isso se resolve? As pessoas colocaram todas as possibilidades e não vejo uma direção única nesse caminho. 
Confesso que fiquei desanimado com o desenrolar da conferência. Participei, como delegado, da 3ª CNSI, em 2001, e a 4ª, ocorrida em 2006, acompanhei por meio do movimento indígena e do relatório exaustivamente avaliado. Muitos dos pontos retornaram agora, na 5ª conferência. Dá a impressão de que não havia conhecimento do que tinha sido discutido antes. Ou seja, embora tenha havido expansão do financiamento na saúde indígena, as ações da ponta continuam precárias: faltam medicamentos, falta estrutura para posto de saúde, faltam profissionais, as crianças continuam adoecendo e morrendo, os indicadores de saúde têm melhora muito discreta, não têm ainda um impacto nas ações de saúde. Mas a luta continua e eu acho que ter trazido a discussão da estruturação do sistema para a população foi um ponto positivo. É importante as pessoas se sentirem empoderadas no sentido de demandar, de expressar suas necessidades. Esse espaço é válido, importante e positivo, mas é preciso avançar e ir além do lugar comum”.
Paulo Basta, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Ensp/Fiocruz) e delegado da Abrasco
 

Por mais controle social

“Tenho dificuldade de ver a conferência como um momento vitorioso. Acho, sim, que foi um momento de perceber as questões em disputa e onde não se tem ainda uma resolução muito clara, como por exemplo a discussão sobre média e alta complexidade ou a regulamentação da contratação dos profissionais ou, ainda, a formação dos agentes indígenas de saúde. Mas não se debateu e isso é o que mais lamento. Foi uma frustração a plenária final. É importante o que aconteceu? É. Mas aconteceu de maneira a parecer a festa da democracia, aparentando consensos entre setores e temáticas, que sabemos que não existem. As questões não foram amadurecidas como deveriam. Tive a sensação de estar em um congresso onde os palestrantes iam tratar dos temas, mas falavam de forma ampla, fora de contexto, sem esclarecer as questões e os problemas estruturais que as propostas traziam nas suas formulações. 
A questão da identidade indígena misturada com os cargos de gestão e controle social tem impedido um certo discernimento. É legítimo que as lideranças indígenas assumam cada vez mais papéis dentro da estrutura de gestão dos serviços de saúde e que ocupem lugar nas mesas e espaços de mediação. Mas, por vezes, isso confunde os lugares de fala: eles estão na posição de gestor ou controle social? No caso da educação indígena, isso tem funcionado, garantindo uma educação com especificidades, o que qualifica o sistema. Mas não tem acontecido o mesmo na saúde indígena. 
O movimento indígena está muito preocupado com a continuidade da atenção e tentou garantir ao máximo a responsabilidade da Sesai, seja com distribuição de medicamento, seja com algumas ações de serviço. Mas o bloco de propostas referente ao controle social [Eixo temático 2: ‘Controle social e gestão participativa’], que é importante, foi pouquíssimo discutido. O eixo temático 3 [Etnodesenvolvimento e segurança alimentar e nutricional], foi aprovado por unanimidade. O 4 [Saneamento e edificação de saúde indígena] também. Isso foi tratado como vitória, mas, na verdade, tem muito a ser debatido. Faltou articulação entre os indígenas para unificar sua pauta, como aconteceu com o governo, que chegou a agendar uma reunião durante a conferência para orientar sobre a condução das votações. 
Um dos objetivos do evento, teoricamente, é fazer uma análise da situação da saúde. E não houve um momento, de fato, de apresentação e discussão da situação dos povos indígenas, inclusive para direcionar o que é prioritário nas quase 500 propostas aprovadas. Por exemplo, algo que me surpreendeu foi um discurso muito presente no meu grupo de que “o SUS não é nosso parceiro” ou de que o SUS não nos pertence, o que tem a ver tanto com especificidades culturais e com vivências realmente negativas — já que não existem políticas que tentem combater o preconceito e a discriminação que os indígenas sofrem dentro dos serviços de saúde — quanto com uma falta de entendimento do que seja atenção diferenciada e o que de fato é função da Sesai. A saúde indígena está dentro do Sistema Único de Saúde e, portanto, teria um caráter de complementaridade. Ou seja, perdemos uma ótima oportunidade de fazer um bom debate sobre o tema na conferência e a questão não foi amadurecida como deveria. Esse é apenas um exemplo”.
Ana Lúcia Pontes, professora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) e delegada da Abrasco
 

Exercício retórico

“O grande ponto positivo foi a presença indígena no evento como um todo. Mas acho que houve poucos avanços por conta do modo como a conferência foi estruturada. Pode ter sido um problema de metodologia, mas eu diria, de forma bastante categórica, que isso acabou por limitar de modo significativo a participação indígena nos debates.
Por exemplo, a plenária em massa queria que a Sesai garantisse aos indígenas atenção de média e alta complexidade. Não tenho a menor dúvida de que média e alta complexidade foi a expressão mais repetida ao longo dos dias, sem que houvesse esclarecimento maior sobre o que significa trazer isso para as atribuições da Sesai; o que se espera e se propõe de funcionamento do SUS, do subsistema dentro do nosso sistema de saúde; e o que se espera da atenção primária, secundária e terciária. Não havia um esclarecimento sobre os pontos do debate. Não parecia um espaço democrático de fato.
Problemas assustadores que presenciamos nas terras indígenas, como a inexistência ou fim dos estoques de medicamentos para grupos específicos como hipertensos e diabéticos, que não se resolvem há anos, apareceram mais uma vez na conferência. Mas, quando os participantes gritavam desesperados pelo fim desse tipo de problema, as falas institucionais, do Ministério da Saúde e da Sesai, assumiam ares extremamente políticos. Todos os problemas já pareciam resolvidos. Todos tinham sido solucionados, porque novas resoluções haviam sido recém-assinadas e, portanto, não haveria mais aquele problema. 
A sensação é que não houve efetiva abertura para o diálogo mas um exercício retórico que limitava a participação. Veja o episódio do protesto da delegação de Mato Grosso na abertura do evento. Embora aplaudidos pela plateia, eles foram solenemente ignorados pelas autoridades que continuaram com o protocolo sem interromper seus discursos ou fazer qualquer menção ao que estava acontecendo. Ou seja, as pessoas foram aplaudidas, mas sequer foram olhadas. Aquele episódio foi a metáfora da invisibilidade indígena no nosso país. 
Outro aspecto preocupante foi o fato de os perfis de saúde não terem sido debatidos em nenhum momento. Os atuais perfis de saúde dos povos indígenas resultam, em alguma medida, do adequado funcionamento do subsistema de saúde dos povos indígenas no Brasil. Ou seja, se há grandes problemas, eles precisam ser solucionados pelo subsistema, o que requer algum monitoramento, mas isso não foi discutido.
De positivo, penso que apontam-se e reafirmam-se proposições para a formação e atuação dos trabalhadores de saúde indígena, em especial dos agentes indígenas de saúde. Há propostas contraditórias aprovadas: uma que exige aumento de qualificação, de escolarização desses profissionais; outra, já em andamento, não propõe o aumento de escolaridade, mas pede formação pelas escolas técnicas do SUS. O fato é que o reconhecimento dessas categorias é um grande tema em torno do qual parece haver unanimidade. 
Apesar de todas as limitações, não acho que o modelo de conferências seja um modelo de participação esgotado, mas é necessário haver um esforço maior para que efetivamente se traduza num espaço de controle social. O entendimento de qualquer evento como esse leva tempo, precisamos digerir isso e entender os processos até para reverter o que houve de negativo. O que não foi discutido deve ser avaliado como lacuna, juntamente com os relatórios das conferências anteriores, e debatido coletivamente por trabalhadores, usuários, gestores, pesquisadores, todos nós, como membros da sociedade civil, e deve seguir como demanda para a próxima."
Maurício Leite, professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e delegado da Abrasco
 
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