Ato Médico??? Por que médico???

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Olá, pessoal!
Vejo um burburinho rolando aqui na rede em relação ao Ato Médico. Mas que ato é esse? E por que tem esse nome? Ato Médico??????????? Quem falou isso?
Sou psicólogo, trabalhei em CAPS por 7 anos, em Unidade Básica de Saúde com Estratégia de Saúde da Família, em Penitenciária… Andei muito nas famosas ambulâncias do SAMU percorrendo a cidade e fazendo atendimentos de urgência à pacientes portadores de transtorno mental grave junto de médicos, enfermeiros, técnicos em enfermagem, motoristas, vizinhos, familiares, ou seja, todos os que se envolvessem com a situação em questão. Bati boca na porta de pronto-socorros com aqueles que se recusavam a receber os pacientes por um curto período,  para que esses pudessem ser avaliados pelas equipes dos CAPS das regiões onde moravam no dia seguinte, em virtude de “n” complicações que encontrávamos no funcionamento da rede. Fiz vários Acompanhamentos Terapêuticos com esses pacientes pela cidade, trabalhei com diversos profissionais em várias oficinas terapêuticas dentro ou fora do CAPS, dei banho e comida na boca para muitos pacientes quando foi necessário e nunca precisei afirmar a minha “identidade” de psicólogo ou precisei esfregar o meu CRP na cara de alguém nas muitas vezes em que saí sujo e cansado do serviço por conta do excesso de demanda. Também não me considero herói por causa disso, apesar do baixo salário e da função mais do que generalista que eu cumpria.
É por isso que venho aqui para dizer que a questão do Ato Médico, se fosse simplesmente uma boa discussão sobre o ATO ou o AGIR em SAÚDE, seria muito mais produtiva. Já trabalhei com médicos muito bons e que de fato estavam interessados na potência que reside na relação entre o trabalhador da saúde e o paciente, nesta relação que se transforma no palco das mais variadas possibilidades de intervenções terapêuticas e de invenção da vida, assim como com enfermeiros, técnicos em enfermagem e assistentes sociais que ofereciam uma boa escuta no contato com os usuários. Já me sentei com médicos para fazer oficinas terapêuticas no CAPS, grupos terapêuticos na Penitenciária (e isso era possível sim!), já andei de ônibus com médicos para levar os usuários do CAPS ao cinema, já vi médicos acompanhando usuários à escola no momento da matrícula, já fiz “n” Acompanhamentos Terapêuticos em parceria com os médicos, já os vi organizando a bagunça das casas juntos dos usuários mais comprometidos do serviço, já trabalhei com médicos que despessoalizavam os seus saberes e se faziam repórteres para que a oficina de jornal do CAPS funcionasse, absolutamente adorando o que faziam porque a possibilidade de criação de outros modos de trabalhar na saúde se fazia presente. Já discuti casos de pacientes psicóticos com vários especialistas, pois nas múltiplas conformações delirantes da vida, muitos pacientes se sentiam vigiados e controlados por algo externo aos mesmos, mas de algum modo, localizado em seus corpos. Após exames atenciosos feitos por estes profissionais, pudemos juntos trabalhar com os usuários a aceitação do uso da medicação antipsicótica quando nenhuma outra alteração era constatada. Já vi muitos profissionais se desgarrarem de suas identidades profissionais e quebrarem o corporativismo em si próprios em prol da ampliação da clínica.
Assim, penso que isso é produzir rede, trabalhar em equipe, qualificar o discurso e atuação profissional em sua diversidade, é des-especializar e des-absolutizar os corporativismos que fragmentam o nosso campo de trabalho. É desconstruir verdades em relação aos nossos saberes e produzir novos mundos juntos dos usuários. É deixar a vida e o trabalho mais leves, é levar as sutilezas a sério, é considerar de fato o que é um problema relevante a ser enfrentado, é sair do plano da segurança que uma identidade profissional ilusoriamente nos dá e nos lançar aos desafios e riscos inerentes à produção da vida, pois produzir saúde pode ser sinônimo de produzir vida.
Nunca, em meu percurso profissional, apliquei uma injeção ou fiz um curativo que necessitasse de uma indicação técnica precisa. Nunca prescrevi medicação, mas já me vi , assim como aos meus colegas e como a maioria dos profissionais já se viu um dia, prescrevendo condutas que hoje as classifico mais como morais do que como terapêuticas. Sempre cumpri horário e não culpava a gestão pelos faltosos, mas buscava entender porque o peso do trabalho gerava isso.. Não sou nenhum missionário da saúde e já me vi indignado milhões de vezes com algumas coisas que meus colegas faziam.  Porém, aprendi muito com tudo isso. Mas o maior aprendizado é o da não necessidade de uma “identidade profissional” totalizante, fragmentária e que alavanca lutas por regulamentações desnecessárias, como a que requer o ato médico.
Ato Médico é uma invenção que supostamente daria conta de assegurar a uma parcela da classe médica a sua própria existência, a qual só acontecerá de fato se estiver protocolada e rubricada pelo Senado Federal. Mas existir dependendo da aprovação de uma lei é reduzir a vida aos ditames da burocracia, é buscar legitimidade no escuro e não na experiência da vida, é fugir dos riscos e não experimentá-los com prudência, é conseguir se esconder no claro, é afirmar que a vida só acontece se preenchermos as nossas faltas, como se o papelzinho da aprovação da lei fosse a condição de subsistência do profissional médico, é afirmar o poder pela força, é negar o coletivo como fonte de produção da vida, do trabalho, da saúde, é girar em torno de um falso problema.
Podemos então dedicar atenção a produção do ATO, do ACT, do ACTIO, do agir em saúde, daquele com a qual a maioria dos trabalhadores da saúde está envolvida e trazer à discussão as questões que enfrentamos na produção de redes de cuidado.
Um dos grandes temas que nos rodeia frente às redes de cuidado é o trabalho em equipe. É difícil trabalhar em equipe porque temos que nos deparar não apenas com o sofrimento dos usuários, mas com as dores dos trabalhadores que estão imersos na produção serializada da saúde. Mas tal produção é dolorida também por causa da “exclusão” de alguns grupos profissionais. A enfermagem, p.ex., mesmo sendo dominante nos serviços de saúde é constantemente acusada de ser um entrave para a facilitação da clínica por conta de seus rígidos protocolos e de uma formação voltada para a gestão taylorista dos processos de trabalho. Mas, será que é essa categoria que trava o trabalho? Psicólogos, terapeutas ocupacionais e psiquiatras, quando constituem a equipe de saúde mental de um determinado serviço, são constantemente acusados de serem taxativos e donos da verdade frente ao sofrimento alheio. Quando não são demonizados, são endeuzados porque lidam com problemas que a maioria das equipes não quer chegar perto. Médicos especialistas devem ter agendas abertas para os usuários marcados no dia e dar conta das vagas de urgência. Em que momento eles discutem casos? Além disso, são apontados como MÉDICOS, e não como integrantes das equipes. Médicos especialistas??? Só conseguirão atender daqui há 3 meses! Dá pra ver, apenas por estes pequenos exemplos que a dificuldade não se resume apenas à gestão. A PNH tem como um de seus princípios a inseparabilidade entre gestão e clínica. Sendo assim, como articular a construção da clínica sem excluir dela o componente da gestão? Como fazer para deixar de olhar para as categorias profissionais que “incomodam” como excluídas e vê-las como incluídas no processo de trabalho e nos dizendo alguma coisa sobre este? Isso já não dá uma boa e relevante discussão?
Na clínica, na parceria entre trabalhadores e usuários, todos somos gestores de uma vida em processo, de um sintoma que se concretiza e exige ações. Sendo assim, construir um diagnóstico frente aos sintomas é uma tarefa coletiva. O diagnóstico nos revela o processo de construção de algo que varia em um corpo, que foge da estabilidade e se afirma de modo diferente. Cuidar não significa apenas classificar, aplicar técnicas terapêuticas ou fazer procedimentos. Podemos, ao invés disso, fazer do procedimento um ato coletivo; transformá-lo em ATO; um ato que na transversalidade de saberes na área da saúde pode nos fazer escutar o paciente para além de seus sintomas e nos auxiliar a diagnosticar, orientando trabalhadores e usuários em formas de como lidar com as doenças, sejam elas graves ou crônicas. Mas, fundamentalmente, o diagnóstico não é a certeza da sabedoria do médico ou de qualquer outro profissional e por isso ele deve ser compartilhado, e não privatizado como almeja o ato médico.
E finalizando, para não deixar esse post mais cansativo do que a luta pela aprovação do ato médico, retomo a questão do ato médico como um falso problema. Penso que o pouco que coloquei acima pode nos servir como um respiro no meio deste esmagamento da diversidade de práticas e saberes. Ato médico é sim um falso problema. Se ele, como colocado aqui nesta rede também já foi chamado de “tanto faz”, é fato que ele não precisa existir. E, por ser um falso problema, fazer campanha para que ele se efetue é um desgaste. É um desgaste tão grande que vai gerar rugas. Mas a todos os profissionais médicos e não médicos (mas todos inclusos aqui) e que se desgastam com essa batalha, eu só peço uma coisa: entendam, por favor, que essa ruga é uma marca que a vida deixou em vocês; é a expressão inscrita em vossos corpos da luta pela qual estão implicados. E as marcas que a vida nos imprime quando nos atravessas são sim extremamente valiosas, não devendo ser apagadas. Então, que as marcas sejam valorizadas, e não transformadas em motivos para pequenas intervenções cirúrgicas.
CONTRA O ATO MÉDICO E A FAVOR DO OLHAR PARA A MULTIPLICIDADE DE PRÁTICAS E SABERES NA SAÚDE!
Um grande abraço a tod@s!
Ricardo Sparapan Pena