Temporão: “Quero me caracterizar como ministro sem marca”

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ENTREVISTA –  José Gomes Temporão

O ministro da Saúde, José Gomes Temporão, admitiu ontem que, após quase três anos no cargo, sente-se frustrado por não ter conseguido aprovar no Congresso o projeto que cria as fundações estatais de direito privado, concebidas para modernizar a gestão dos hospitais públicos. Diante deum quadro com a foto do médico Sérgio Arouca, em seu escritório no Rio, Temporão denunciou pressões corporativas de centrais sindicais e de partidos, e disse que só o consola o fato de governos estaduais estarem implantando o modelo. "O mau atendimento ainda é um desafio a ser superado", admitiu. Para o Rio, anunciou acordo com a Prefeitura para criar novo sistema de saúde: "Vamos mudar radicalmente esse modelo hospitalcêntrico".

Ao tomar posse, em março de 2007, o senhor prometeu transformar o SUS em motivo de orgulho para os brasileiros. Por que o SUS continua não sendo um motivo de orgulho?

TEMPORÃO: Eu estava me referindo a um processo político de construção de uma consciência na sociedade da importância do sistema público universal. A questão no Brasil é muito complexa, porque muitas vezes as pessoas estão usando o sistema de saúde e não percebem que é o público.

 

Mas o atendimento hospitalar continua deficiente.

TEMPORÃO: Depende. É muito heterogêneo. Você tem lugares onde, por questões de oferta, há falta de médicos e de estrutura, como na Amazônia Legal. Mas em Belo Horizonte a percepção é outra. O brasileiro gosta de falar mal. Há um certo hábito de as pessoas fazerem um estereótipo. Mas vão no Inca (Instituto do Câncer) e ficam perplexos ao saber que é sistema público. É claro que existem problemas estruturais que impedem que o sistema apresente um padrão de qualidade, de acolhimento, de conforto, de condições de trabalho para os profissionais em várias regiões do país. Isso é um desafio a ser superado.

 

O senhor mesmo disse há algum tempo que essa é uma questão
dramática no país.

TEMPORÃO: Exatamente. A administração dos hospitais públicos é uma área em que, de um lado, eu me sinto um pouco frustrado, mas, de outro, consolado. Frustrado porque o projeto de lei criando as fundações estatais está engavetado na Câmara, não anda. Mas, por outro lado, o debate estimulou governadores a implantar em vários estados modelos semelhantes. Pernambuco, Ceará, Bahia, Rio, Sergipe, entre outros, estão trabalhando com o conceito de fundações estatais. Eles perseguem profissionalização da gestão, vínculo empregatício pela CLT, avaliação de metas com indicadores, transparência na gestão, que é o modelo que as fundações estatais persegue.

 

O senhor tenta aprovar esse projeto há quase três anos.
Por que é tão difícil?

TEMPORÃO: Por pressão corporativa de centrais sindicais.

 

O PT também não participa dessa pressão?

TEMPORÃO: Não é uma coisa localizada no PT, é uma coisa mais disseminada. Setores do PT participam da CUT, mas também há outros partidos que fazem uma pressão grande contra essa medida. A questão toda que ninguém quer enfrentar – e essa resistência não é só do Parlamento, mas da presidência do Conselho Nacional de Saúde – é que isso mexe na relação contratual dos servidores. Essa é a essência. Sai de um sistema em que todos têm estabilidade para um modelo de premiação por desempenho. A opinião pública apoia a ideia, mas isso não sensibiliza os parlamentares.
 

 

Mas o senhor já admite o fracasso ou vai tentar aprovar?

TEMPORÃO: Enquanto estiver no ministério, não desisto! Continuo achando absolutamente fundamental para o futuro da gestão hospitalar pública.

No Rio, não houve melhoria do atendimento hospitalar. Há
emergências lotadas e demora na marcação de consultas.

TEMPORÃO: Eu discordo! Acho que, com a implantação das 22 UPAs, houve uma mudança brutal. Você não vê mais centenas de pessoas amontoadas na porta do pronto-socorro. Quando a gente inaugurou a UPA da Maré, acabou a crise no Hospital de Bonsucesso. É claro, existe problema de superlotação, mas a resposta está sendo dada.

 

O senhor não acha que falta uma marca para sua gestão?

TEMPORÃO: Eu critico muito essa questão da marca e quero me caracterizar como um ministro sem marca. Tenho 30 anos de carreira em saúde pública e meu objetivo no ministério é qualificar o sistema de saúde, não tenho interesse em ter uma marca para me projetar. Mas tenho marcas bastante robustas: na minha gestão, pela primeira vez se quebrou a patente de um remédio, um antiretroviral. Estamos produzindo um genérico e economizado milhões de dólares com esse medicamento. Foi a partir de uma discussão que eu coloquei na rua que a Lei Seca saiu e milhares de vidas estão sendo salvas. Realizei a maior campanha de vacinação do mundo para erradicar a rubéola. Recoloquei no debate político a questão do aborto.

 

Por que o senhor não tem sido bem sucedido no Congresso?

TEMPORÃO: No Congresso, os lobbies são muito poderosos, e são temas polêmicos. A única maneira de enfrentar isso é debater cada vez mais, ouvir todos os setores de maneira democrática.

 

Em sua posse, o senhor disse que uma de suas especialidades é
descascar pepinos e abacaxis. O senhor acha que conseguiu descascá-los?

TEMPORÃO: Olha, não são poucos. Acho que é um dos ministérios mais difíceis do governo, uma área muito sensível. O Brasil ainda luta para apresentar um padrão de qualidade adequado. Meu cotidiano é descascar abacaxis.

 

O senhor prometeu mais atenção básica de saúde. Mas o povo não continua recorrendo às emergências dos hospitais?

TEMPORÃO: O Programa Saúde da Família, de atenção primária, atende 100 milhões de pessoas. Metade da população brasileira, principalmente das regiões metropolitanas, não está coberta por esse sistema. No Rio, va mos finalmente mudar radicalmente esse modelo hospitalcêntrico. O Rio é o paradigma mais perverso de uma omissão histórica que pôs o hospital como o centro da atenção do sistema, o que é um absurdo.

 

Mas foi preciso esperar quase 3 anos para mudar o modelo?

TEMPORÃO: Só quando Eduardo Paes foi eleito é que foi possível. Até ano passado, com César Maia, não havia amenor possibilidade de conversa sobre essa questão. Finalmente, estamos avançando.

 

O que muda?

TEMPORÃO: Muda muito. Vamos financiar cerca de 40 policlínicas no Rio, vai ser uma ampliação muito grande do Programa Saúde da Família, no modelo de sistema integrado. Coisas novas estão acontecendo. E agora as UPAs, que tiram dos pronto-socorros a demanda de baixa e média complexidade. Os grandes hospitais têm de cuidar dos casos mais graves. Estão em construção 180 das 500 UPAs que vamos construir no país até 2011. É uma melhoria da qualidade do sistema. Repõe os hospitais como eles devem estar: atendendo casos graves.

 

Em quanto tempo o povo começa a sentir os efeitos?

TEMPORÃO: Acho que em dois anos se terá condição de perceber mudanças importantes. Mas eu diria que a população do Rio já percebeu. É uma solução que o Rio começou a testar, e estamos disseminando para todo o Brasil.

 

As UPAs podem se tornar a marca de sua gestão?

TEMPORÃO: Serão, com certeza, na área de qualificação da atenção, do atendimento de urgência e emergência, de resolver esse nó dessa coisa dramática das pessoas esperando atendimento nas filas dos pronto-socorros.

 

Falta dinheiro para resolver os problema da saúde?

TEMPORÃO: Com certeza. Se não resolvermos o problema do subfinanciamento crônico do SUS, corremos o risco de criar um novo apartheid social no Brasil, entre as famílias que têm condição de comprar a saúde no mercado e os que dependem do sistema público, cada vez mais fragilizado financeiramente, perdendo qualidade e perdendo capacidade de atender as demandas e exigências da sociedade.

 

Pergunta da leitora Giovana Zibetti: "Será que algum dia nós médicos do serviço público vamos ter uma remuneração compatível
com nossa profissão? "

TEMPORÃO: A remuneração dos médicos varia. Os que trabalham no Ministério da Saúde fazem parte do plano de cargos e salários da seguridade social e ganham muito mal, algo entre R$ 2.500 e R$ 4.000 por 20 horas semanais. A realidade é completamente diferente em outras áreas: a Rede Sarah paga R$ 18 mil ao profissional com dedicação exclusiva. No Saúde da Família, não há médico que ganhe menos de R$ 7 mil. A remuneração média é ruim, mas ela é muito heterogênea. Acho que o salário é inadequado e gostaria de triplicá-lo, mas falta dinheiro. Depende da solução do financiamento da saúde.

 

Pergunta do leitor Antonio Carlos Abrão Teixeira: "Em nome dos pacientes do Inca, que está ficando cada dia mais sobrecarregado,
que saídas o ministério vê para a questão"?

TEMPORÃO: Aí a gente cai no modelo de gestão da fundação estatal. O Inca desenvolveu um modelo heterodoxo. Como os salários são baixos, não se autoriza concursos e o padrão de gestão é ineficiente, eles criaram uma fundação de direito privado que resolveu tudo isso: contratava o profissional, complementava o salário, dava agilidade administrativa. Só que o Ministério Público e o TCU condenaram o modelo do Inca, disseram que vai contra a Constituição. A única saída é transformar o Inca numa fundação estatal. O Inca é um exemplo precioso dessa falácia dos grupos corporativos que se põem contra a proposta. A solução para esses hospitais é a fundação estatal e por isso não desistimos e continuamos insistindo.

 

Pergunta do leitor Marcílio Campos Goudad: "O senhor tem plano de saúde? Se tem, é porque não confia no sistema público de saúde? Sua família tem plano de saúde? "

TEMPORÃO: Eu sou funcionário da Fiocruz, que tem um plano próprio. Temos uma fundação privada que se chama Fioprev e esta tem o Fiosaúde. A Fiocruz paga 40% e os outros 60%, eu pago. Defendo uma posição sobre isso: são 40 milhões de pessoas que usam os planos de saúde privados, e elas podem abater no Imposto de Renda o valor. A renúncia fiscal é de R$ 10 bilhões por ano. Além disso, o governo federal gasta R$ 2,5 bilhões por ano complementando o plano de saúde de Executivo, Legislativo e Judiciário. São, ao todo, R$ 12,5 bilhões por ano. Acho que seria interessante que o governo não subsidiasse mais os planos de funcionários públicos dos três poderes. Quem quiser, pague o plano de seu próprio bolso, quem não quiser, use o sistema público de saúde.

 

(Fonte: O Globo, 14/11/2009)