Povos Indígenas: A importância da Construção Coletiva em Saúde Mental.

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A autora começa o artigo dizendo que pensar em Reforma Psiquiátrica é pensar em lidar com o outro, com o diferente, enfrentando a exclusão e a intolerância. Relata que, nesse contexto, a experiência de trabalhar com a saúde indígena permite-nos encontrar a diversidade e o outro de forma marcante. Salienta que tratar o tema diversidade é bastante relevante para a Política Nacional de Humanização, pois, é através de experiências e debates que a Reforma Psiquiátrica está se desenvolvendo no Brasil. O encontro de culturas revela modos diferentes de ser, viver, pensar o mundo, assim como diferentes formas de percepção, explicação e intervenção no processo de adoecimento e cura. Cita Levi Strauss que diz que “todos os sistemas de cura dependem da eficácia simbólica criada pela relação de confiança interativa entre o médico/curador, o paciente e as expectativas sociais em torno do modelo praticado”. É preciso assumir na atenção básica e na saúde mental a possibilidade de povos tradicionais ou indígenas formularem outros modos de perceber, explicar e tratar os problemas de saúde.

Estudar a população indígena brasileira conscientiza-nos sobre aspectos de nossa própria sociedade, sobre os quais refletimos muito pouco e leva-nos a considerar um ponto de vista diferente. A autora faz uma comparação entre os espelhos dos parques de diversões e a Antropologia, dizendo que existe entre eles uma importante característica em comum: ambos alteram a percepção. Nos espelhos, altera-se a percepção que o indivíduo tem de seu corpo e do espaço; Na Antropologia, o que se altera é a percepção que ele tem de sua sociedade e de outras em geral. Não podemos pensar que outras sociedades são melhores ou piores do que ou a nossa, mas sim que temos algo a aprender com elas. Podemos considerar nossa sociedade ocidental como uma entre as muitas que constituem o mundo.

Este artigo relata a experiência do Projeto Xingu, propondo uma reflexão, levantando questões e desafios para o debate sobre a saúde mental e os povos indígenas. Fala de algumas situações e experiências vividas pela Equipe do Projeto Xingu da EPM/UNIFESP; pelos Indígenas do Parque Indígena do Xingu e pelos Pacientes do Ambulatório do Índio do Hospital São Paulo. Obviamente não dá conta da diversidade do problema nas diferentes áreas indígenas do País.

Até pouco tempo, o foco da construção da política de saúde indígena baseava-se no modelo de atenção, na necessidade de concretizar uma atenção diferenciada e na organização dos serviços de saúde destinados a esta população. Através de muita luta e persistência, foram criados e implantados os distritos sanitários especiais indígenas pelo País, constituindo o que hoje conhecemos como Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, o SASI-SUS. A demanda maior ainda é a assistência médica e o controle das doenças infectocontagiosas, particularmente as a malária e a tuberculose, que somadas às doenças respiratórias agudas e às diarreicas, são responsáveis pela maioria de óbitos em áreas indígenas, especialmente nas regiões Norte e Centro-Oeste, onde existe maior isolamento. Percebeu-se também que fatores como desnutrição, obesidade, hipertensão arterial, diabetes mellitus, depressão, consumo de bebidas alcoólicas e suicídio, também são relevantes neste contexto. Comprova-se que estes problemas de saúde relacionam-se às mudanças e condições de vida e à relação de contato e convivência com a sociedade.

Várias são as situações de contato e conflito entre os povos indígenas e a sociedade, que infelizmente vê o indígena como um obstáculo e infelizmente, gera preconceito e exclusão. A Escola Paulista de Medicina, da UNIFESP, há 49 anos trabalha entre os povos indígenas do Xingu, acompanhando lideranças, jovens, estudantes, trabalhadores, agentes de saúde e professores indígenas, os quais transitam entre os dois mundos: o do índio e o do não índio, entre a aldeia e a cidade. Muitos destes entram em conflito, sentem-se perdidos, como que isolados no meio do caminho, em cima da ponte…

Muitos indígenas sentem-se distantes de sua referência cultural, de sua identidade coletiva, aspectos esses que, infelizmente, contribuem para a desordem, para o caos individual e coletivo. Como será que os indígenas, suas lideranças, homens e mulheres, percebem estes problemas? Na prática, algumas estratégias têm sido adotadas, tanto para uma abordagem individualizada como coletiva.

Alguns casos com sintomas que sugerem depressão ou surtos psicóticos no Xingu, têm sido tratados com uma estreita relação entre os diferentes sistemas de cura, tais como: o ocidental/biomédico e o tradicional (pajés e rezadores). Uma das possibilidades desse diálogo passa pelo estabelecimento de um vínculo entre profissionais de saúde e os usuários indígenas, que permite a avaliação clínica, a interpretação simbólica do comportamento e fenômenos mentais.

A característica definidora do ser humano, comparado aos outros seres vivos, é o fato do mesmo ser produtor de sentido. Ele representa o que está acontecendo em função dos seus quadros de pensamento, que se compõem de saberes, crenças, símbolos, valores e modelos éticos. Esta construção de sentido é o resultado de processos individuais e decorre da própria história de cada um. Mas é também o produto de uma cultura coletiva que imprime sua marca nas representações dos membros de um grupo ou de uma sociedade. Vários estudos epidemiológicos e antropológicos revelam a falência de políticas públicas de programação em saúde justamente por não considerarem essa “construção de sentido”.

Questões como: invasões de terras, política indigenista oficial fragmentada, emergência de novas afrontas à saúde, conflitos geracionais e desvalorização da cultura, têm criado lacunas e tornado os indígenas mais vulneráveis aos problemas relacionados à saúde mental. Diante destes casos mais complexos, a equipe médica procurou auxílio na área da Psicologia e da Psiquiatria, a fim de para avaliar e acompanhar os pacientes. A abordagem multidisciplinar feita de forma cuidadosa e valorizando a cultura, propiciou bons resultados, a ponto dos próprios pajés buscarem uma aproximação aos médicos. Já foram realizados alguns encontros para discussão de casos entre os pajés, clínicos e psiquiatras.

O artigo também cita exemplos de casos clínicos envolvendo indígenas, casos esses que obtiveram uma resposta satisfatória do quadro do paciente, quando os profissionais trabalharam em conjunto. Neles ressalta-se a importância de ações como: ouvir o doente com atenção; trabalhar em conjunto com a equipe de saúde; estimular a família a dar apoio ao doente; estabelecer um tratamento medicamentoso, com supervisão e acompanhamento; discutir o caso com o pajé (liderança espiritual). É comprovado o resultado satisfatório dessa forma de percepção do indivíduo, onde a sensibilidade cultural, o vínculo, a observação e a escuta contínua, facilitam o diálogo intercultural.

O aumento do consumo de bebidas alcoólicas (tanto oriundas do homem branco ou produzidas dentro própria comunidade indígena) pela população indígena, tem sido objeto de grande preocupação nos Postos Indígenas e nas Aldeias. O processo de alcoolização entre os índios do Xingu, infelizmente tem crescido nos últimos anos e tornado-se um grande problema de saúde, principalmente em decorrência da intensificação do contato do índio com o homem branco. Algumas conversas nas comunidades foram realizadas e o controle sobre a entrada de bebidas começou a ser intensificado, porém sem uma sistematização ou continuidade. Alguns indígenas passaram a introduzir a bebida disfarçada dentro da área, o que dificulta o controle.

Diante desta situação, propôs-se a elaboração de um Diagnóstico Participativo sobre o consumo de bebidas alcoólicas na região do médio, baixo e leste do Parque Indígena do Xingu. Para a realização deste diagnóstico, foram utilizados vários espaços de conversa e diferentes instrumentos para entrevistas individuais. A perspectiva foi a de criar estratégias que dêem conta dessa demanda, mas principalmente que ofereçam uma abordagem coletiva do problema.

A questão do aumento do consumo de bebidas alcoólicas foi trabalhada durante o Curso de Formação dos Agentes Indígenas de Saúde, como uma das estratégias de sensibilização, mobilização e enfrentamento do problema. Foi proposta aos alunos uma pesquisa de campo, em que os agentes indígenas de saúde entrevistaram os mais velhos, os sábios, as lideranças, os homens e as mulheres das aldeias, sobre diferentes temas a serem trabalhados.

Para esta pesquisa específica, foram feitas perguntas como: Antigamente existia alguma bebida usada pelo seu povo? Quais as bebidas e como eram feitas? Em que momento era usada? Atualmente esta bebida continua sendo consumida por seu povo e em que momento? Outras bebidas foram introduzidas na sua aldeia? Quem introduziu? Quais bebidas? Quem consome e em que momento? Você acha que bebida alcoólica é um problema na sua aldeia? Que tipo de problema a bebida causa? Como a comunidade enfrenta este problema? E por fim, Como você ajudaria as pessoas que enfrentam o problema do álcool em sua aldeia?

Constatou-se no resultado, que a percepção de todas as comunidades referentes ao aumento do consumo da bebida alcoólica, é um problema sério entre os povos do Xingu. Todos revelaram que a bebida do branco tem sido introduzida por indígenas que frequentam a cidade, particularmente lideranças e assalariados como os funcionários da Educação, da Saúde e da Funai. Na maioria dos relatos o problema começa na cidade e está invadindo as aldeias. Também foram relatados os casos de jovens e adolescentes, que vão estudar na cidade e, longe da família, da aldeia e de suas regras sociais, são seduzidos por colegas a consumir bebidas alcoólicas, outras drogas, além de frequentar prostíbulos. As pesquisas foram feitas de forma individual.

Foi proposta a elaboração da “Rede Explicativa do Problema” e a construção do “Plano de Soluções”. Em resposta à pergunta: “Por que a questão da bebida alcoólica é um problema no Xingu?”, foram identificados fatores como: Fácil acesso dos indígenas à cidade, fazendo compras e trazendo a bebida alcoólica para a aldeia; Indígenas que bebem com amigos da cidade e posteriormente ensinam outros da aldeia a beber; Falta de conscientização dos pais com os filhos/parentes que moram na cidade; Falta de interesse na própria cultura levando à desvalorização de seu próprio povo; Aumento do número de índios morando na cidade; Aumento da entrada de não índios na terra indígena do Xingu; Aumento de lideranças alcoolizadas na cidade; Aumento do número de casamentos com não índios; Aumento de pessoas assalariadas (funcionários).

Foram relatadas várias consequências do alcoolismo no Xingu, tais como: Desnutrição, doenças no fígado, hepatite, gastrite, etc.; Presença de DSTs, tais como a AIDS; Perda de credibilidade junto à aldeia; Descontrole; Depressão; Desvalorização; Desorganização e divisão da comunidade; Mudança de comportamento; A pessoa passa a não dar valor às orientações da comunidade e da família; Afeta até mesmo as pessoas que não têm a bebida na aldeia; A bebida leva a pessoa para longe de sua cultura e gera sentimentos de superioridade aos demais.

Como Plano de soluções, foi pensado na realização de ações individuais e coletivas. Individuais, tais como: Realizar visitas domiciliares à fim de conscientização; Mapear as pessoas que não aceitam material educativo; Aconselhar, orientar e dialogar; Conscientizar sobre o risco que correm ao ir à cidade pela primeira vez; Apontar as consequências da bebida alcoólica, tais como violência, cirrose, intolerância, problemas no coração, no cérebro, gastrite, pancreatite, dentre outros; Reunir-se com a comunidade quando houver algum problema na aldeia, a fim de que não piore a situação. Coletivas, como: Criar um plano de soluções com a comunidade; Realizar reuniões da comunidade com a equipe de saúde multidisciplinar, envolvendo lideranças, professores, agentes indígenas de saúde (AIS), agentes indígenas de saneamento (AISAN), auxiliares de Enfermagem, chefe de posto indígena e coordenador de saúde; Realizar reunião para tratar coletivamente as pessoas que estão em risco; Dar continuidade ao trabalho de fortalecimento das escolas indígenas a fim de impedir a saída de jovens para estudarem na cidade; Fazer palestras, teatros, passar filmes na comunidade com os professores, AIS, AISAN, agentes indígenas de saúde bucal (AISB), cacique; Envolver os projetos realizados na aldeia nas discussões sobre alcoolismo.
Referindo-se ao Polo-base determinou-se que Coordenadores e chefes não devem dar mau exemplo aos funcionários e devem orientá-los sobre os perigos do álcool antes de contratá-los; Disponibilizar carros, motor de popa e barcos para a realização de trabalhos nas aldeias da abrangência; A equipe técnica deve ficar atenta à pessoa que se envolve com bebida alcoólica, para tratar quando for necessário.

Quanto ao Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI/Xingu), deve haver: Garantia de recursos e combustível para realização do trabalho nas aldeias e polos-base; Garantir equipe técnica para acompanhar o trabalho nas aldeias; Garantir capacitação e materiais educativos para os agentes de saúde; Conscientizar seus funcionários para não usarem bebida alcoólica dentro da área indígena.

Outros setores devem: Fazer parcerias com instituições como ONGs, Associações Indígenas, Escolas Centrais, a fim de realizar trabalhos de prevenção e conscientização nas aldeias; Articular com a Educação o fortalecimento das escolas locais a fim de evitar a saída de jovens estudantes para a cidade; Buscar projetos culturais que envolvam os jovens e as lideranças das aldeias, valorizando a sua própria cultura.

Durante as discussões e o fechamento das propostas de enfrentamento do problema do uso de bebidas alcoólicas, também foram apresentadas as estratégias a serem implementadas pelo Projeto Xingu da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), a saber: Estabelecimento de regras do trabalho com relação ao uso de bebidas alcoólicas; Realização de um Diagnóstico Participativo sobre o problema da bebida alcoólica entre os povos do Xingu;  Promover encontros das Mulheres Xinguanas, convidando lideranças, a fim de discutir o problema e pensar propostas de enfrentamento; Propor esta questão como ponto de pauta nas reuniões dos conselhos locais e distrital; Apoiar o trabalho dos AIS nas atividades coletivas sobre este tema; Articular com o setor de educação para promoção dos cursos profissionalizantes na área da Saúde; Buscar estratégias de tratamento e acompanhamento para os casos de alcoolismo; Construir livros bilíngues sobre mudanças no modo de viver, evitando consumo de bebidas alcoólicas, apontando riscos de saúde; Apoiar projetos relacionados ao resgate da cultura/saúde, plantas medicinais, entre outros, para estimular o diálogo entre as gerações.

Assim como a autora do artigo, acredito ser de extrema importância a fortificação da própria cultura e costumes, através da estimulação e manutenção de práticas tradicionais dentro da comunidade, pois comprova-se que em alguns adultos que já tiveram experiências com bebidas e que hoje não consomem mais, houve um processo de conscientização interna, por meio de algum fato que esse adulto viveu ou presenciou, que o tocou e que o fez repensar a si mesmo, seu futuro.

Certamente o campo da saúde mental e saúde dos povos indígenas, tem um longo caminho a percorrer. É preciso desconstruir conceitos, quebrar paradigmas, a fim de encontrar resultados satisfatórios. A Psicologia, assim como outras áreas do conhecimento que não a Antropologia, por muito tempo silenciou frente à realidade indígena, devido a fatores, como por exemplo, o isolamento voluntário ou imposto pelo Estado aos grupos indígenas, ou ainda pela dificuldade da própria ciência psicológica que tem suas bases teóricas construídas sobre a cultura ocidental europeia e a concepção de sujeito a partir da sociedade moderna.

Cabe aos serviços de saúde perguntar-se: Como fortalecer as práticas de cura tradicionais indígenas? Como criar estratégias que lidem e valorizem o coletivo e a coesão das sociedades indígenas? Como estruturar serviços de referência culturalmente sensíveis para lidar com esta questão? Como capacitar e potencializar as equipes locais para ações de prevenção, de vigilância e de abordagem terapêutica destes casos?

Evidencia-se claramente a importância do vínculo e do diálogo entre os profissionais de saúde e os doentes, seus familiares, especialistas tradicionais e comunidades, buscando maior autonomia e liberdade dos sujeitos envolvidos no processo de recuperação da saúde e do equilíbrio. Esta ideia é plenamente compatível com as diretrizes apontadas pela Política Nacional de Humanização.

REFERÊNCIAS:

MENDONÇA, S.; Saúde Mental e Povos Indígenas: Experiência de Construção Coletiva no Contexto do Projeto Xingu; Cadernos Humaniza SUS, Volume 5, p. 442 à 459.