A Ética da Práxis.

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O fundamento de políticas públicas, quando baseado nas noções de mérito, perfil, adequação de demanda, prioridades (e todo o tipo de justificativa para a exclusividade) é pendular. Segue os imperativos de uma ética baseada na escassez. Quando falamos em inclusão estamos pressupondo o fenômeno da exclusão como inerente ao sistema. A afirmação, nesse caso, é sustentada pela sua negação. As medidas para mitigar o mal, são o bem no extremo oposto da oscilação de um pêndulo. Há um conceito de “natureza humana” implícito nessa ação. Uma natureza que, ou seria inerentemente competitiva e egoísta, ou tenderia para isso, mesmo quando parece altruísta.

Todas as ações de propor ampliação de direitos, políticas de acesso, programas de governo, plataformas eleitorais, trazem implícita a aceitação de que existe, de fato, a escassez de recursos. Aceitamos, assim, que as ações humanas no mínimo tendem para a iniquidade. Ou seja, para a pilhagem de recursos, para a busca de uma vantagem competitiva, pela busca de mérito e merecimento. De onde a noção de que o problema central da produção de desigualdade e sofrimento é tido como parte constituinte da “natureza” humana. O pecado original é substituído por uma “verdade” original.

Toda a ideologia que advoga por uma regulação do mercado – qualquer que seja: monetário, de prestígio ou simbólico – traz um paradoxo em seu âmago. O próprio Estado de bem-estar social surge como uma forma de mitigar os efeitos de um sistema de produção que se assenta na competição. A competição se instala em cenários de miséria material, de limitação trágica. Produzindo, assim, uma forma triste de sentido e significado que marcaria indelevelmente o conjunto das relações humanas. Ao percebermos a existência como deficitária, não podemos evitar de viver em lamento.

A noção de tragédia grega – entendida como a submissão dos destinos humanos às contingências que não podemos evitar, nem remediar por completo – eleva-se a uma forma de moral fundada na miséria. Estar alheio a verdade e perdido nos caminhos do erro é uma noção que advém de estar em uma situação prática para a qual não estão disponíveis os recursos ou meios de superação.

Como a morte é uma condição inevitável, a nossa miséria existencial tende a nos capturar para uma percepção mesquinha do mundo. Temos um olhar aguçado para sentir a competição e míope para a percepção da solidariedade. O pecado original parece se impor como parte de nossa “natureza”.

O prazer implicado no fato de encontrar alimento, para si e os seus, durante a uma crise de fome (em uma tribo primitiva) é emulado nas relações sociais baseadas na competição nas sociedades modernas. Deixamos de perceber, no mundo moderno, a realidade de que as gerações passadas alimentam as sociedades contemporâneas através de seus legados de saber e conhecimento. Somos o efeito da cooperação e da solidariedade. Mas nós nos percebemos como individualistas e mesquinhos.

A selvagem luta por prestígio na academia, na forma de obtenção de reconhecimento num oceano de anônimos é o espelho perfeito da luta por alimento, abrigo e segurança no contexto dos humanos primitivos. A humanidade luta contra escassez com a estratégia de combinação de esforços e solidariedade. É desse modo que realizamos a partilha das tarefas e dos bens que advém do trabalho coletivo. A civilização é a evidência desse fenômeno da cooperação, da solidariedade e do valor da igualdade de condições, em meio a diversidade de modos de ser.

Mas, encontrar uma solução em meio a uma crise, tem um significado perverso e intrínseco. Quando saímos de uma situação difícil porque obtemos a vitória sob uma condição climática, vencemos na disputa com outro ser humano, ou outra tribo, nação ou povo o destino trágico dos derrotados é a condição de nossa felicidade. O perecimento de todos aqueles que nos precederam e, de nós mesmos, ao legarmos o mundo a nossos descendentes, provoca um ressentimento e uma saudade do mundo em que estaremos ausentes.

Na maior parte da história da humanidade o bem-estar e os bens estiveram condicionados a pilhagem, ao saque e ao sequestro. A violência e a dor são o outro lado da moeda de qualquer forma de sucesso, mérito e vitória. Somente as soluções tecnológicas permitiram a superação da escassez e a exposição aos elementos e catástrofes ambientais. Quando manejamos o fogo ou preservamos na escrita as nossas experiências, produzimos devir sem saquear ou pilhar e vivemos na economia da dádiva e dos dons solidários.

Por exemplo, a disponibilidade de energia elétrica em larga escala, permite, entre outros confortos, o acesso a água potável. O planejamento da relação capacidade instalada/ demanda viabiliza que o acesso ao recurso siga a lógica do compartilhamento solidário e não da competição por recursos escassos. Uma solução é sempre uma vitória contra a escassez.

No entanto, por questões da concentração de poder e renda nos países do chamado primeiro mundo, os recursos do planeta estão disponíveis para apenas uma parcela da humanidade. O grande desafio atual é assumirmos que o controle da escassez de recursos é um problema técnico. O cálculo é fundado numa ética das práxis e não na moral subjetiva. Compartilhar é uma decisão ética baseada no reconhecimento da escassez e no planejamento de sua gradativa resolução.

O desafio não é a promoção da igualdade, mas a instalação de um mercado do desejo e do prazer que não seja baseado na exclusividade e na exclusão. Por outras palavras, um mundo em que a diversidade dos modos de ser, seja compatível com a igualdade.

A convicção de que é impossível superar o egoísmo, se ancora na noção de que este instinto é parte da “natureza” humana. Natureza humana é um conceito que implica na existência de um criador. O sentido dessa expressão tem origem na religião e onde quer que esteja sempre faz referência a essa crença de que o mundo tem uma causa primeira.

Se permanecermos nessa crença, será necessário desapegar-se da ideia de livre arbítrio. O bem e o mal estarão alojados na determinação onipotente que cria o mundo e os seres. Esse, invariavelmente é o estatuto de toda a crença: o poder de escamotear a dúvida e encontrar em tudo que há, uma justificativa posterior que se advoga como causa primeira.

Outra crença, mais antiga, permite entender que o egoísmo e o próprio do altruísmo são produções da subjetividade, dos sonhos, loucura e sapiência humana. A própria produção de sentido está relacionada a uma capacidade objetiva de esforço intelectual. Ir na direção do destino na forma do encontro de um caminho potente e alegre é a dádiva sem origem que a humanidade recebe enquanto a realiza.

Pode ser que nunca cheguemos a uma civilização solidária, capaz de lidar com a contingência dos recursos que estão sempre um passo atrás de nossos desejos. Mas será que essa situação pode não ter a marca de uma naturalidade atávica?

Se a resposta a essa questão for sim, viveremos mais de acordo com a forma biológica da inteligência cognitiva que se manifesta na progressão da vida em nosso planeta. A consciência poderá romper a barreira dos conceitos absolutos e estagnantes e ser – como a vida – contraditória e afirmar e negar simultaneamente.

O desafio reside em podermos aceitar a evidência dos fatos. Admitirmos que a ética capitalista, liberal, contemporânea está fundamentada na competição pela salvação da alma perante o julgamento de um deus despótico.

O pecado e o crime são a marca original de uma espécie de símios com menos pelos e mais inventivos. Para sobreviver no mundo temos que agir como condenamos, temos que condenar nos outros o instinto que nos move. Vale para os políticos numa câmara, assembleia, congresso; vale para os professores universitários em seus departamentos de pesquisa; vale para empresários em guerra por segmentos de mercado…

Enfim, a ética da competição é a mesma que fundamenta a ação do ladrão, do batedor de carteiras, do patrão da boca de tráfico. Superar a competição implica numa ética da ação voltada para a solidariedade e a maximização dos recursos e não do lucro e da vantagem.