Trajetória ateista de Sigmund Freud (1856-1939)*(2)

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Telmo Kiguel

Médico Psiquiatra

Psicoterapeuta

Resumo
Esta publicação * objetiva introduzir o leitor na forma como Freud construiu – metapsicologicamente – seu entendimento ateísta sobre os conflitos existenciais do homem. Utiliza, para tanto, um resumo de quatro de seus trabalhos.

Introdução

Disse Freud (1930) na tradução hebraica de “Totem e Tabu”:

“Nenhum leitor (da versão hebraica) deste livro achará fácil colocar-se na posição emocional de um autor que é ignorante da linguagem da sagrada escritura, completamente alheio à religião de seus pais – bem como de qualquer outra religião – e não pode partilhar de ideais nacionalistas, mas que, no entanto, nunca repudiou seu povo, que sente ser, em sua natureza essencial, um judeu e não tem desejo de alterar essa natureza. Se lhe fosse formulada a pergunta: ‘Desde que abandonou todas essas características comuns a seus compatriotas, o que resta em você do judeu?’, responderia: ‘Uma parte muito grande e, provavelmente, a própria essência’. Não poderia hoje expressar claramente essa essência em palavras, mas algum dia, sem dúvida, ela se tornará acessível ao espírito cientifico”.
“Assim, constitui experiência de um tipo muito especial para esse autor um livro seu ser traduzido para a língua hebraica e colocado nas mãos de leitores para quem esse idioma histórico é uma língua viva; um livro, alem disso, que trata da origem da religião e da moralidade, embora não adote um ponto de vista judaico e não faça exceções em favor do povo judeu. O autor espera, contudo, estar de acordo com seus leitores na convicção de que a ciência sem preconceitos não pode permanecer estranha ao espírito do novo judaísmo”.
Isaac Bashevis Singer em 1958 (Premio Nobel de Literatura em 1978) por sua vez arremata no seu romance “O Solar”, através de um personagem: “Posso negar a existência de Deus, mas não posso deixar de ser judeu, por mais contraditórias e estranhas que sejam essas palavras”.

Totem e Tabu – (1913) (2)

Aos 57 anos Freud escreve esta que é uma de suas maiores obras. Nela parte da hipótese de que certamente houve uma época sem religião e sem deuses. Nesta época chamada de Animista, quando os homens desejavam algo da Natureza, utilizavam-se de uma técnica – a magia – que influenciava diretamente a Natureza: p. ex., em caso de seca, eles mesmos faziam algo que se assemelhasse à chuva.
A partir daí surge uma questão: o que teria causado a transição do animismo para a religião? Resposta: uma revolução na organização familiar.
Num tempo primitivo, os homens viviam em pequenas hordas, cada qual sob o poder de um macho que se apropriava de todas as fêmeas. Um dia, os filhos desta pequena horda primitiva rebelaram-se contra o pai, mataram-no e comeram o seu cadáver. Em seguida criaram uma nova ordem social: proibição do incesto e proibição de matar o pai-totem.
Surgiu, a partir dai, uma nova organização social, as restrições morais e a religião.
Vejamos a descrição de alguns termos básicos para o entendimento da origem das religiões:
Totem: geralmente o totem é um animal, mais raramente uma planta ou um fenômeno natural que o selvagem encara com um respeito supersticioso, acreditando existir entre ele e todos os membros do clã uma relação íntima e especial. Em quase todos lugares onde existem Totens há também uma lei contra relações sexuais entre pessoas do mesmo Totem e, conseqüentemente, contra o seu casamento. A violação desta lei é castigada energicamente.
A exogamia vinculada ao Totem tem um efeito maior que o de impedir o incesto de um homem com sua mãe e irmãs. Ela torna impossíveis as relações sexuais de um homem com todas as mulheres de seu próprio clã, considerando-as parentes consangüíneas. A exogamia totêmica parece ter sido o meio para impedir o incesto grupal.
Tabu: traz em si o sentido de algo intocável e é expresso principalmente por proibições e restrições. Pode ser uma pessoa, um lugar, uma coisa ou uma condição transitória. As restrições do tabu são diferentes das proibições morais ou religiosas. Seria o mais antigo código de leis não escritas do homem. A sua origem está na base do mais primitivo e ao mesmo tempo mais duradouro dos instintos humanos: o medo dos poderes demoníacos.
A característica original do tabu (a de que um poder demoníaco jaz oculto num objeto que se for tocado se vinga lançando uma maldição sobre o transgressor) era o “medo objetivado” e que posteriormente se transforma em veneração e horror.
No início não havia distinção entre o sagrado e o impuro. O tabu se aplica tanto ao sagrado quanto ao que é impuro através do contato com ele.
Feitiçaria é essencialmente a arte de influenciar os espíritos tratando-os do mesmo modo que se tratariam os homens, em circunstâncias semelhantes: apaziguando-os, fazendo-lhes correções, tornando-os propícios, intimidando-os, roubando-lhes seu poder, subjugando-os à própria vontade, etc…
Magia: fundamentalmente desconsidera os espíritos e faz uso de procedimentos especiais e não dos métodos psicológicos do dia a dia. Tem que servir aos mais diversos propósitos: deve submeter os fenômenos naturais à vontade do homem, proteger o indivíduo de seus inimigos e perigos, bem com dar-lhes poderes para prejudicar o inimigo.
Um dos métodos mágicos mais difundidos para prejudicar um inimigo é fazer uma efígie com qualquer material adequado. A crença é que o que for feito à efígie acontecerá também ao odiado original. A magia é a técnica do animismo.
Espíritos e demônios: são apenas projeções dos impulsos emocionais do próprio homem. Ele transforma seus investimentos emocionais em pessoas, povoa o mundo com elas e mais uma vez enfrenta seus processos mentais internos fora dele mesmo.
Portanto, a primeira realização teórica do homem, a criação dos espíritos, parece ter surgido das observâncias do tabu. A principal realização da religião, quando comparada ao animismo, está na vinculação psíquica do temor aos demônios. Não obstante, um vestígio dessa era primitiva, o Espírito do Mal, manteve um lugar no sistema religioso.
Superstição: no homem primitivo, a superstição não é necessariamente a única e real razão para um costume ou observância em particular o que não nos dispensa do dever de procurar seus motivos ocultos. No animismo é inevitável que toda observância e toda atividade tenham uma base sistemática, que a partir daí passou a ser descrita como supersticiosa.
Pai: o assassinato do pai primitivo leva (alem da criação do totem e da proibição do incesto – não ter relações com uma mulher do mesmo totem) à tentativa de apaziguar o sentimento de culpa com o pai (atraves do totem, substituto do pai). É uma tentativa de provocar uma reconciliação com o pai.
A religião totêmica surgiu deste sentimento filial de culpa. Todas as religiões posteriores são vistas como tentativas de solucionar esta mesma questão.

* Versão ampliada e modificada do trabalho apresentado no Curso “Psicoterapia: Religião e Religiosidade”, no XXIV Congresso Brasileiro de Psiquiatria (2006) e no Simpósio do Departamento de Psicoterapia no XXVII Congresso de Psiquiatria (2009).

(2) Segunda de uma série de quatro

A seguir outras publicações correlatas do blog:

Trajetória ateista de Sigmund Freud (1856-1939)*(1)
Homossexualidade, religião, psiquiatria: uma evolução. (7)
Encerrando o debate com Flávio Aguiar incluindo editorial do Charlie Hebdo sobre laicidade.