A Morte Como Mercadoria

18 votos



Aqui, um primeiro impasse em relação ao consumo de serviços funerários se apresenta. Não queremos conviver com a morte. Mas quando ela acontece, temos obrigatoriamente que consumir produtos que não desejamos, temos que realizar escolhas que não queremos. A forma como lidamos com a mercadoria “produtos funerários” é, portanto, esvaziada das formas significadoras que aprendemos a usar em relação aos gestos de consumo. Poucos teriam a visão prática, por exemplo, de fazer uma pesquisa de preço para buscar a urna funerária mais barata, a coroa de flores mais em conta, o velório menos dispendioso. Além disso, os produtos funerários não estão dispostos em out-dors ou podem ser vistas em glamorosas publicidades de revistas de grande circulação.

Diante da pergunta se venderíamos ou não um irmão, ela parece soar estranha e bizarra. Com certeza porque as relações familiares ainda não se renderam a lógica da mercantilização. É uma sensação similar que temos quando lidamos com a morte e seus aspectos econômicos. Não estamos habituados a comprar aquilo que não queremos. Quando consumimos, queremos utilizar as coisas pela sua beleza e prazer. Instaura-se uma relação em que, no lugar do desejo hedônico, existe o ódio e o sofrimento. Intuindo essa tensão, as empresas funerárias mudaram há alguns anos sua estratégia de marketing. Se antes estávamos acostumados àquelas funerárias em torno dos hospitais, com urnas expostas nas calçadas, agora nossa sensibilidade expressa a necessidade de consumir os produtos mortuários na ausência de sua visibilidade. As empresas em seu “layout”, começam a se assemelhar à agências de turismo. Seus nomes sinalizam “tranqüilidade”, “carinho”, “cuidado”, refletindo a necessidade de se atuar e se falar sobre a morte como se ela não existisse.

O atendimento, em particular quando voltado as classes médias urbanas, vende o produto funerário como se estivéssemos num agência de automóveis. Cada novo aparato num funeral é como se fosse um “opcional”. Detalhes como o tipo de bebida e comida a ser oferecido para as pessoas que comparecem ao velório bem como se haverá ou não veículo coletivo para buscar convidados num aeroporto ou leva-los a um cemitério, são itens a serem possivelmente consumidos. Os funcionários são treinados para mostrar sempre uma postura respeitosa e cordata. Falas como “volte sempre” e “foi um prazer servir você” tornam-se expressões inaceitáveis. Na mídia, os produtos funerários oscilam entre mensagens sérias e respeitosas, ou então, são associados a situações cômicas. O sagrado é afugentado por um profano cada vez mais estruturado a partir das relações de troca. Entretanto, o limite parece ter sido atingido por uma empresa italiana de produtos funerários, que disponibiliza em seu sítio na internet, entre muitas coisas, um conjunto de calendários com mulheres sensuais associadas a caixões. A foto abaixo é um dos muitos exemplos:




vide cofanifunebri

Um novo olhar sobre o lema "Carpe Diem" dos romanos? Um convite para uma sexualidade desenfreada porque um dia iremos morrer? Nem tanto. Apenas a constatação mercadológica de que a maioria dos indivíduos proprietários de empresas funerárias são homens e, semelhante ao que acontece com outros produtos com a marca da masculinidade, explora-se o viés machista de seu público. Neste sentido, sob o prisma econômico, camisetas, cervejas, carros, futebol e urnas funerárias, chafurdam na mesmice das relações de troca mediadas pela mercadoria dinheiro.

Em outra vertente, numa sociedade que patologiza a morte como algo antinatural, torna-se necessário expandir os serviços médicos oferecidos por uma medicina cada vez mais escravizada frente ao aparato tecnológico, nem tanto pelo paradigma da promoção de saúde, mas, principalmente, pelo paradigma que vê na morte uma eterna inimiga, a doença em si mesma. Se por um lado o discurso médico sinaliza que a morte e o morrer podem estar subordinados a soluções científicas, essas mesmas soluções são vendidas como mercadorias que promovam a saúde. Aqui promover a saúde significa negar a morte. Este talvez seja um dos aspectos que intensifiquem a exclusão social da velhice. O velho sempre nos lembra que ele é o novo lócus da morte. Daí, portanto, a mercantilização do nosso medo de envelhecer transmuta-se no crescimento vertiginoso do esteticismo, das cirurgias plásticas e do consumo de cosméticos. Antes de se parecer com jovens, as pessoas na verdade querem neuroticamente negar a própria finitude. No capitalismo não só são mercantilizadas as práticas objetivas em torno da morte, mas também nossas sensações psicológicas de medo e afastamento.

Por fim, temos que destacar um outro aspecto importante. Se em toda a sociedade o acesso às mercadorias produzidas bem como ao usufruto da riqueza delas advinda é desigual, o mesmo podemos dizer referente a mercantilização da morte. Toda hora somos bombardeados por notícias que nos permitem o direito ao otimismo. O “admirável mundo novo” de Huxley está diante de nós. Abandonou o papel e ganhou materialidade, inclusa suas contradições. Se a média de vida aumenta, quem de fato vive a média de vida se a maior possibilidade de acesso aos bens materiais e simbólicos parece ser um fator decisivo referente à quantidade e qualidade dos anos que vivemos? Frente as mazelas da fome e da miséria um arsenal de instrumentos se revelam eficazes, mas o que fazer se a sociedade mercantil parece preconizar o uso dessas técnicas muito mais em função do valor de troca? Isso nos permite afirmar que, aparentemente, vivemos numa sociedade que preconiza uma “engenharia da morte”.

Este talvez seja o aspecto mais apavorante da mercantilziação do morrer, pois estar à margem do mundo das possibilidades de consumo significa, em maior ou menor grau, ter mais chances de morrer cedo, mal assistido e com sofrimento. É para fugir desse mundo de horrores, de um sistema de saúde que atenda de forma desigual e excludente, que a classe média deságua nos planos de saúde. Ironicamente, são nesses planos que a mercantilização da vida e da morte podem ser mais claramente aferidos. Ai daquele cujo corpo necessite de exames e outros procedimentos não cobertos pelo plano. Sua morte estará decretada. Ai daquele que necessite permanecer mais tempo na UTI, sua execução será sumária. Pobre do homem que precisar fazer outra tomografia computadorizada antes que o tempo para tal possa novamente ser contado. O plano de saúde, como qualquer prática de compra e venda, é regulado por um contrato comercial. Só percebemos isso quando nossos corpos rebeldes recusam-se a subordinação de leis de mercado e “quebram” regras contratuais. Chegamos assim ao limite da coisificação quando as ações de seres humanos frente a outros seres humanos, com vida diretamente ameaçada, estão sujeitas a normas burocráticas, parágrafos e clausulas regulatórias, expressões diretas da lógica advinda da “mão invisível” que esquadrinha corpos e práticas, reduzindo o homem àquilo que ele é, de fato, no capitalismo: uma mercadoria que além de agregar valor pode, como qualquer mercadoria, ser usada e vendida.


Aqui finalizamos nossas digressões. Para comprova-las, ou não, basta a ida ao mundo cotidiano, pulsante de ação e vida. É o que pretendemos no futuro. No momento, fiquemos na companhia de Manuel Bandeira:

Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos postos para a vida
Absortos na vida
Confiantes na vida.

Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade
Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta.

Não sei se a vida é traição, mas pensar na morte nos faz refletir muito sobre a vida. Talvez ai resida uma das tristes conseqüências da mercantilização da morte e do morrer. A reificação do luto e da dor nos narcotiza frente às questões mais importantes e que, respondidas, exigem resoluções que não são meramente discursivas, mas também atuantes. Nosso ser agnóstico muitas vezes se debate frente à possibilidade do fim como algo absoluto. Não queremos contaminar o leitor com divagações depressivas. Fica, no entanto, o lembrete que a mercantilização da morte é uma das conseqüências da mercantilização da vida. A reificação das práticas e rituais em torno dela produzem essa ação maquinal habilmente descrita pelo poeta. Volta e meia podemos, além da opacidade da sociedade mercantil, olhar a morte pelo que ela tem de mais importante e, por que não dizer, lírico. A morte é uma exímia professora que nos ensina que tudo é transitório e, assim, nos ajuda a revestir todos os aspectos da vida com a sua real importância, estruturada por eventos singulares e preciosos.