Doutores em Humilhação

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Aconteceu no interior de São Paulo. Um homem negro e pobre ia de bicicleta para o trabalho quando foi agredido, fisicamente constrangido e humilhado, mais precisamente porque era negro e pobre. Foi atacado por jovens.

 

A situação seria igual a tantas outras se os jovens não fossem estudantes, e mais, estudantes de medicina. Foram denunciados e presos. Sua universidade os puniu com expulsão do curso.

 

Recebi esta notícia por email da rede e fiz questão de destaca-la aqui. Creio que essa decisão – mesmo que seja revertida pela tortuosidade do sistema jurídico brasileiro – deva ser divulgada. Durante séculos acreditamos no mito de que bastaria que as pessoas fossem inteligentes para que se transformassem em bons profissionais.

 

Hoje sabemos que ter inteligência não significa possuir sabedoria. Poderíamos definir a sabedoria como a capacidade de se utilizar o acúmulo de informações para objetivos éticos, construção de cultura de paz, harmonia e solidariedade entre as pessoas. Creio que estes estudantes demonstraram sua incapacidade para serem bons médicos. São inteligentes mas não usam o que sabem de forma adequada. Se espancam negros na rua agora, o que farão com a pobreza nas filas das emergências? Como racionalizarão o uso dos leitos de uma UTI? Como trabalharão nas unidades básicas?

 

Talvez um dia os processos seletivos sejam, aprimorados para que, junto a capacidade de traquejo algébrico, manejo de tabelas periódicas ou meramente gravar as caracterísitcas das cidades estado na Grécia antiga, seja também avaliado os atributos humanos necessários para cada profissão. Enquanto isso não ocorre, trata-se de impedir que a barbárie tome posse de seus diplomas e os utilize para continuar destilando seu racismo e seu preconceito de classe em hospitais, escolas, empresas e repartições públicas. Abaixo segue um artigo escrito pela antropóloga Débora Diniz analisando o ocorrido.

 

Doutores em humilhação

Agredir e insultar um homem a caminho do trabalho é obviamente inaceitável. Pior quando os agressores estudam medicina

Debora Diniz* – O Estado de S.Paulo

Três rapazes agridem um senhor em uma bicicleta com um tapete de carro. A força do impacto leva o homem a se desequilibrar e cair da bicicleta. Excitados pelo impulso sádico, os rapazes teriam gritado "ô, nego". Um grupo de testemunhas denuncia os rapazes à polícia. Eles são presos, o que poderia ser considerado um desfecho justo ao ritual de humilhação racial e de classe. Mas o Centro Universitário Barão de Mauá, no interior de São Paulo, decidiu também expulsá-los do curso. Eles estudavam medicina.

O que há de tão grave nessa história, além da injúria racial e da agressão física a um homem inocente a caminho do trabalho? O fato de os três rapazes estudarem medicina. Esses são desvios inaceitáveis para qualquer cidadão, mas particularmente inquietantes quando seus autores são futuros médicos. Há um espaço simbólico reservado ao médico em nossa vida social: a ele cabe o conforto, a escuta e o cuidado. Há uma expectativa de acolhimento universal que não distingue cor, idade, sexo ou religião. Um pacto silencioso de confiança é o que nos move ao entrar em um consultório médico: aquela pessoa de branco diante de nós está ali para cuidar de nosso medo da morte.

Dos médicos se espera mais do que o simples cumprimento das regras fundamentais da cidadania: é preciso uma consciência ética sobre o lugar sagrado que socialmente lhes é reservado. Por isso, não pode haver médicos racistas, sexistas ou violentos. As crenças privadas de um médico são simplesmente seus valores sobre o bem viver, o que não lhes confere nenhuma autoridade para julgar ou reprimir moralmente seus pacientes. Um ginecologista, por exemplo, não tem o direito de expressar suas inquietações homofóbicas ao atender uma paciente lésbica, assim como um obstetra de um hospital público, na ausência de colegas que o substituam em um plantão, deve atender uma mulher com autorização para o aborto legal. Esses encontros atualizam a consciência ética que todo médico deve ter ao exercer a medicina.

O homem da bicicleta foi humilhado pelos três rapazes que acreditavam ser divertido agredir ou assustar pessoas a caminho do trabalho. O exercício da humilhação é um instrumento de poder dos fortes e os médicos são indivíduos com poder sobre o corpo vulnerável de um paciente. Mesmo que não estivessem ainda no exercício da medicina, os rapazes testavam os limites das vantagens conferidas pela desigualdade de classe e de raça que contornam nossa vida social. Se um dia vierem a ser médicos e ainda distantes da consciência ética sobre a dor do outro, eles terão outros homens da bicicleta como pacientes e diante deles expressarão semelhante desprezo. Certamente, não mais os agrediriam com um tapete nas costas, mas com a indiferença pelo sofrimento.

Muito se fala na humanização da medicina e das outras profissões de saúde. Essa expressão é uma forma simples de traduzir alguns dos valores fundamentais que devem acompanhar a formação ética dos futuros médicos. Um bom médico não é apenas aquele que se atualiza nas técnicas e conhecimentos sobre sua especialidade, mas é principalmente aquele que se aproxima de seu paciente e é capaz de entender as sutilezas do seu sofrimento. O reconhecimento do papel simbólico do médico está diretamente relacionado ao exercício desses atributos. Por isso, no sentido mais clássico da expressão, um bom médico exercita a nobreza de caráter.

A expulsão do curso de medicina não deve ser entendida como um ato de vingança ou de duplo castigo. Os rapazes foram submetidos a duas ordens de julgamento. A primeira foi penal e resultou na prisão temporária e no pagamento da fiança pela agressão. A segunda foi ética e anuncia um sinal importante dado por aqueles que se preocupam com a formação dos futuros médicos – há valores fundamentais à consciência ética de um médico e um deles é o respeito ao humanismo. A decisão da faculdade em expulsá-los indica que, apesar da intensa mercantilização da medicina, a ética importa para a formação médica.

Há vários desafios éticos na formação das novas gerações de médicos. O modelo brasileiro de saúde pública se vê continuamente ameaçado pela sedução mercantil da medicina dos desejos, como é o caso das cirurgias estéticas. A medicina deve ser uma prática que reconhece a universalidade da condição humana e não simplesmente o poder de consumo de seus pacientes. O medo da morte e as fragilidades que nos acompanham são parte de nossa condição humana compartilhada e desconhecem qualquer diferença que nos situem como trabalhadores negros ou estudantes brancos de uma faculdade privada.

* Antropóloga, professora da Universidade de Brasília e pesquisadora da Anis: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero