Lei 13.438/2017 – uma discussão de caráter ético-político urgente é preciso

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Uma discussão fundamental vem tomando as redes virtuais e territoriais, palco de todos os assuntos que se referem aos cuidados com a infância e os efeitos ético-políticos de deliberações sem um foro de análise mais amplo e democrático.

 

Trata-se da promulgação da lei 13.438/2017, que, ao incluir “um parágrafo ao Artigo 14 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069, de 1990), torna obrigatória a aplicação a todas as crianças, nos seus primeiros dezoito meses de vida, de protocolo ou outro instrumento construído com a finalidade de facilitar a detecção, em consulta pediátrica de acompanhamento da criança, de risco para o seu desenvolvimento psíquico”( conforme excelente documento elaborado por Luciano Elia, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e anexado a este post ).

 

As redes virtuais amplificam fenômenos já correntes em outros âmbitos, fabricando supostas verdades, mas também dando voz a outros olhares sobre movimentos cruciais para a vida de todos nós.

Vejamos alguns exemplos:

Gisela Untoiglich, psicanalista argentina, da Rede Federal de Fóruns das Infâncias, alerta em seu perfil em rede social:

28 de setembro às 20:39 ·

Estou tão preocupada! Cada vez mais rapazes chegam ao meu consultório baleados pelo gatilho fácil da marca tea (distúrbio do espectro autista). Em muitos casos este rótulo fornece-lhe profissionais que foram treinados na aplicação de uma escala. Quero esclarecer que ter pago 2000 dólares para ser creditado em uma escala não é suficiente para poder fazer um diagnóstico diferencial entre autismo e outras patologias na infância ou nenhuma patologia na criança e sim graves problemas de algumas escolas para alojar uma criança que não entra na sua média, com o qual talvez seja um pouco mais criativo para conseguir convocar, ou histórias familiares complexas, ou muitas situações pelas quais uma criança pode parecer estar desligada do seu ambiente.

Parece-me também importante que se saiba que a mesma pessoa que acredito na escala e (escala de observação para o diagnóstico de autismo) é a que interveio na criação dos critérios para o diagnóstico de TEA NO DSM 5 (manual estatístico Das doenças mentais). Acho que isto pode representar um conflito de interesses. Por outro lado, a escala termina com uma nota que diz: “o teste e é uma técnica de diagnóstico complementar, como qualquer estudo não fornece um diagnóstico definitivo”. o que sabe tudo o que faz clínica e que tem as abelhas necessárias de acordo com o seu título Profissional para diagnósticos em saúde mental.

Ser acreditado em uma técnica, não habilita a fazer diagnósticos! E saber aplicar uma escala não significa saber fazer um diagnóstico, especialmente na primeira infância.

Mas quando se escreve no mesmo relatório que a pontuação é “compatível com tea” e se manda a pedir certificado de deficiência, quero que saibam que estão marcando a vida a es@s niñ@s e a esses pais, para sempre!!!

A responsabilidade ética é incontornável!!!

As crianças e os seus pais precisam de tempo para serem ouvidos, as suas angústias devem ser alojadas, não rótulos a infância, não confundamos causas com consequências!

Um bom diagnóstico (sempre necessário) leva tempo e disponibilidade para o encontro com todas as dimensões do doença!

Gisela Untoiglich

 

 

O Fórum sobre a Medicalização da Educação e da Sociedade, movimento social composto por numeroso grupo de instituições e pessoas que trabalham no campo da infância e adolescência, traz um resumo do encontro reivindicado por todos após a promulgação da lei. É preciso garantir os foros democráticos não presentes antes da promulgação e as redes virtuais podem e fazem muito bem este papel.

Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade
Publicado por Rui Massato Harayama · 17 h ·

Nos dias 28 e 29 de setembro, o Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, junto com outros movimentos sociais, autarquias, pesquisadores e especialistas reuniram-se a convite do Ministério da Saúde e da Organização Pan-Americana de Saúde para discutir o Desenvolvimento na Primeira Infância no Contexto da Lei 13.438/2017.

O Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade reitera que a inserção das categorias de risco psíquico na legislação brasileira é um perigoso marco legal que pode agravar os processos de medicalização e judicialização da primeira infância e dos diferentes arranjos familiares brasileiros.

Dentre os consensos e encaminhamentos produzidos no encontro, destacamos:

1. Não há evidência científica que justifique a aplicação de testes de rastreamento de risco psíquico em bebês de 0-18 meses de idade;

2. A CADERNETA DE SAÚDE DA CRIANÇA é o melhor instrumento para acompanhar o desenvolvimento integral das crianças;

3. NENHUM teste deve ser utilizado para realizar rastreamento de distúrbios do desenvolvimento infantil sem parecer da CONITEC;

4. Devem ser realizadas campanhas por órgãos de saúde, educação e assistência social para a promoção do desenvolvimento integral da primeira infância, com destaque para o combate à medicalização e patologização da infância;

5. Estados e municípios devem receber capacitação para o uso da Caderneta da Saúde da Criança como único instrumento operador da Lei 13.438/2017;

6. Entidades da sociedade civil, autarquias e pesquisadores reiteram: REVOGA LEI 13.438!

O Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade não irá economizar esforços para que os consensos e recomendações sejam publicados pelo Ministério da Saúde , assim como irá combater estratégias nos Estados e Municípios brasileiros que tentem dar interpretação diferente à Lei 13.438/2017 enquanto ela ainda estiver vigente no ordenamento jurídico brasileiro!

Pela promoção integral da Saúde da Criança*!

#RevogaLei13438

*O marco legal da primeira infância já prevê muitos dos elementos necessários para a promoção integral da primeira infância, conheça! https://primeirainfancia.org.br/tag/marco-legal/

Conheça o posicionamento do Fórum

https://goo.gl/3ZLyTx

Conheça a Caderneta de Saúde da Criança https://goo.gl/Zud6aW

E, por fim, trazemos aqui as afiadas ponderações do professor Luciano Elia, pautadas no rigor do trato com o ensino, a pesquisa e a clínica com crianças:

Sobre as motivações e consequências clínico-políticas da lei 13.438, de maio de 2017

Quem contestaria o valor inestimável de iniciativas voltadas para prevenir quadros como autismo (ou afecções similares, graves, sobrevenientes na infância)? Quem discutirá que, quando essas iniciativas tomam a forma da lei, supostamente o instrumento de garantia de direitos, esta vicissitude só poderia ser celebrada pela sociedade e pelos cidadãos de bem?

Questões e situações como esta que tentamos caracterizar acima são particularmente espinhosas, sobretudo pela sutileza e complexidade de suas ambigüidades, plurivocidades, multiplicidades de intenções e fatores implicados nela, cujo exame crítico, que no entanto se impõe a toda postura não ingênua diante da realidade e dos fatos discursivos, pode assumir, com grande facilidade, um sentido antinômico ao direito, ao bem-estar e à ética do cuidado em matéria de política pública, principalmente envolvendo a saúde.

Este é o caso da Lei 13.438, sancionada em maio último, que, acrescentando um parágrafo ao Artigo 14 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069, de 1990), torna “obrigatória a aplicação a todas as crianças, nos seus primeiros dezoito meses de vida, de protocolo ou outro instrumento construído com a finalidade de facilitar a detecção, em consulta pediátrica de acompanhamento da criança, de risco para o seu desenvolvimento psíquico”.

Ora, será que podemos sustentar, no rigor ético exigível de todo  procedimento científico, que todas as crianças de 0 a 18 meses de vida devam ser submetidas a protocolos de testagem a fim de detectar possíveis indícios de risco para seu desenvolvimento psíquico? E isso independentemente de todo e qualquer indício real manifesto, porquanto a lei assevera claramente que a aplicação do referido protocolo é obrigatória a todas as crianças, do nascimento aos 18 meses.

Existe nessa obrigatoriedade uma sanha evidente de controle prevencionista excessivo, abstrato, que prescinde do real para intervir sobre ele, nisso consistindo aliás o aspecto mais abusivo do excesso do controle. Podemos chegar a afirmar que o anseio deteccionista tende a produzir, no limite, os indícios que supostamente se pretendem detectar como se já foram existentes, uma vez que a investigação de um ainda-não-objeto-de-investigação o busca, o procura, e portanto em algum grau, o produz.

Entretanto, o aspecto mais grave que podemos identificar nesta lei, que foi sancionada sem que tenha havido qualquer discussão ampla na comunidade científica interessada e de percurso longo e qualificado neste campo, talvez nem esteja no aspecto performático de sua investigação abstrata e irreal, como assinalamos primeiro, mas nos efeitos de alastramento, em escala inimaginavelmente ampla, de “detecções” infundadas, sem suporte real algum.

Os protocolos e instrumentos de detecção, cuja aplicação a toda criança torna-se obrigatória prescindindo-se fragorosamente da realidade clínica, deixam assim de estar a serviço de uma ratio científica, para a qual eles são sempre úteis quando o bom cientista, o rigoroso, mesmo sabendo-os falhos, utiliza-os para abordar, estudar, investigar e intervir sobre um real concreto que assim confere âncora, bússola e baliza ao processo investigativo, reduzindo os riscos de seus indefectíveis erros. Sem isso, a embarcação navega à deriva, ou seja, ao sabor das correntes ideológicas dominantes nas águas do mar. Esses protolocos/instrumentos passam por um processo de fetichização que consiste em suplantar a prevalência do próprio objeto investigado (que, na operação, fora tornado irrelevante de saída) tornando-se, eles próprios, o foco e o eixo da operação, o que, incidentalmente, faz também com que a margem de erro e incerteza (própria a toda atividade científica séria e salutar e que a torna, em aparente paradoxo, mais e mais confiável) fique abolida. Resulta disso um método que consiste justamente em produzir o erro como forma sistemática, de funcionamento operacional, e não como acidente contingencial.

Podemos antever uma proliferação de diagnósticos de falsos quadros de autismo e outras modalidades de sofrimento psíquico, e não sua detecção rigorosa e o mais precoce possível – o que seria alta e absolutamente desejável. Ao invés de trabalhar em prol da detecção a mais tempestiva possível, aquela que seria feita no momento mais inicial de um processo real de adoecimento psíquico na infância, os profissionais e pesquisadores que propuseram e sustentam esta lei preferem operar na abstração de um controle do irreal, tentando produzir realidades que de outro modo possivelmente não seriam produzidas.

Será necessário dizer que uma tal postura atende aos dois senhores absolutos da contemporaneidade, que subjugam sem cessar a Ciência e o Estado: o Capital-em-si e o Controle da sociedade? A proliferação dos diagnósticos sem base real (isto é, preliminar ao diagnóstico mesmo – já que este, na conjuntura em que se inscreve esta lei, vem antes, é ele que é preliminar) serve ao mercado de psicofármacos – o mais rentável do mundo (o de fármacos, que já suplantou o de armamentos que até poucos anos ocupava a pole position) e às práticas de controle e adestramento comportamental, tão hegemômicas e dominantes no mundo atual. Não estamos diante da prevenção do autismo, mas da oficialização da mais clara psiquiatrização e medicalização da infância em escala nacional.

É por issso que é importante deplorar esta lei, e fazer o que estiver ao nosso alcance para barrá-la, impedir sua aplicação, revogá-la (já que, de forma surda e fora da luz do dia das discussões democráticas, ela foi sancionada), começando por exigir a maior participação possível de profisisonais críticos no processo de sua regulamentação, em curso.

A luta pela detecção precoce e portanto do tratamento o mais cedo possível do autismo e quadros similares terá que utilizar outras vias, clinico-politicamente mais éticas e cientificamente mais rigorosas para sua execução.

Luciano Elia